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25 de set. de 2008

Ensaio sobre a cegueira

O espírito do livro está no filme. Como deve ser as boas adaptações de livros para as telas, Fernando Meirelles reinventa a obra para manter-se fiel ao autor. Como no livro de Saramago, temos uma fábula contemporânea sobre nossa incapacidade de ver.

A história é tênue. Sem motivo, repentinamente, o mundo está cego. Apenas a personagem de Julianne Moore mantém sua visão. Ela não possui nome ou passado, como todas as demais figuras principais. Um casal, um senhor negro, uma criança...

Meirelles realizou não só um recontar do enredo, mas buscou nas especificidades do cinema realizar uma obra de força em si. Som, música, edição. Artifícios de linguagem que o diretor domina como poucos. A fotografia de César Charlone, que desconstrói a imagem para melhor captar a impressão de perda da visão e a cegueira branca, é corajosa e de personalidade.

Há, sim, problemas de roteiro. Ensaio... é um tanto desequilibrado, principalmente na primeira meia hora de projeção. Nesse início, falta aos personagens despertar a empatia indispensável para nos envolvermos com o que se passa. Mas logo o envolvimento ocorre, junto com a força que o filme possui.

Quase no final do filme, há uma cena emblemática: na cidade já imunda e decadente, a chuva cai. Homens e mulheres se deixam encharcar em busca não só de limpeza, mas de redenção. Em tempos de brutalidade latente, a civilização clama por purificação.

Como no livro de Saramago, deve-se perder a visão para voltar a enxergar. Diz a mulher do médico (persongem de Julianne) para seu esposo, no final do livro: “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vem, Cegos que, vendo não vêem”.

9 de set. de 2008

Linha de Passe

Uma família da periferia de São Paulo. Quatro irmãos de pais diferentes buscam melhores perspectivas. A mãe, solteira, doméstica e grávida. Não há um pai que complete esta família no novo filme de Walter Salles, Linha de Passe, co-dirigido por Daniela Thomas. A orfandade paterna e suas complicações continuam perseguindo o cinema dos dois diretores. Terra Estrangeira, Central do Brasil, Abril Despedaçado. Nesses filmes a figura paterna é ausente, motivo de busca ou centro dos conflitos do protagonista. Em Linha de Passe, cada um dos irmãos se desdobra de uma forma para lidar com ausência familiar tão fundamental.

Dario (Vinicius de Oliveira), sonha ser jogador de futebol. Dinho (José Geraldo Rodrigues), evangélico, é frentista num posto de gasolina; Dênis (João Baldasserini), motoboy, não vê futuro em si próprio; e Reginaldo (Kaique Jesus Santos), o menor, busca o pai que desconhece. Este caçula empreende a mesma jornada de Josué em Central do Brasil. E assim como em Cidade dos Homens, de Paulo Morelli, esse pai inexistente é metáfora de um País órfão de instituições capazes de acalentar suas contradições.

Walter Salles é cineasta herdeiro do Cinema Novo dos anos 60. Possui um olhar para o Brasil e seus marginalizados. Porém sem o esquematismo que marcou produções de Glauber Rocha, Cacá Diegues e outros. Salles dá a seus personagens complexidade, nuanças. Temas como religião e futebol não são tratados na tela como alienantes. Entender, e não esteriotipar, é o foco do diretor.

Na cartilha marxista de Os Fuzis (1963), de Ruy Guerra, há uma cena inicial emblemática: Uma nordestina idosa diz em depoimento que ficou cega no dia em que morreu Getúlio Vargas. Ou seja, a partir do momento que nosso maior pai político faleceu perdemos a visão, o rumo de nação. Nossa orfandade política, comprova Linha de Passe, permanece. Um filme maduro, belo e intenso.
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crítica de cinema publicada na revista Pipoca Moderna - Ed. 41.

6 de set. de 2008

Nome Próprio (III)

Em Nome Próprio forma e conteúdo andam, na maior parte do tempo, casadas de maneira muito interessante. Sua estética é autoral, feliz, e pouco pedante. Não posso admitir que alguém me diga que talvez Nome Próprio tenha sido realizado para satisfazer o umbigo de Salles. O filme está aberto a se comunicar com aqueles que querem ouvir sua canção. Camila é uma incógnita para o diretor e ele compartilha seus enigmas conosco. Difícil não ver altruísmo nisso.

Assim como em Como nascem os anjos e Nunca fomos tão felizes, filmes anteriores do diretor, Nome Próprio passa-se preponderantemente dentro de uma mesma locação: Um apartamento. Se Camila já cria barreiras para si própria, a claustrofobia de quatro paredes nos leva a um desconforto que é positivo para as intenções do filme. A longa duração de algumas cenas pode mesmo ser interpretado como um “excesso” de Salles, mas esse mesmo excesso colabora para compartilharmos a dor que transborda em Camila.

Algo parecido pode ser dito sobre o teor das interpretações do filme. Leandra Leal me parece realmente irretocável, mas tem sido comum ouvirmos comentários negativos em relação às interpretações do elenco masculino. Elas seriam “over”, exageradas. Penso diferente. Nome Próprio, através principalmente da seqüência final, dá margem para pensarmos que o que vemos no filme nada mais é do que a visão de mundo de Camila. A subjetividade da personagem é a essência do filme!

Não podemos duvidar da inteligência do diretor em querer transformar em proposital um registro de interpretação cheio de singularidade. A chave de interpretação do filme é algo dos mais interessantes na recente cinematografia nacional. Os personagens masculinos são todos um pouco “personagens deles próprios”. Playboys imaturos cheios de grosseria e vaidade. Ora, essas são as máscaras que Camila vê em todos os garotos que conhece. Ficção e “realidade” convergem na mente da protagonista, ela relê o mundo a sua volta.

Camila segue bem as palavras do poeta Ferreira Gullar que não se cansa de dizer: A vida é uma invenção, você escolhe se quer fazer dela uma coisa alegre ou se prefere que seja uma droga. Daí não dá pra deixar de emendar com a já mil vezes repetida frase de Cecília Meireles: A vida só é possível se reinventada. Porque não existe a vida, existe o caos, que você monta como achar melhor...

Há algo do romance Reparação, de Ian McEwan, em Nome Próprio. Algo da jovem Briony Talles em Camila. Quais são os prejuízos do excesso de imaginação? E quanto a mesma imaginação e arte podem auxiliar-nos na “reparação” e reconstrução do mundo, de nós mesmos? Qual a função da arte escrita para Camila se reerguer, se reinventar? Para ela se encontrar como Mulher? ... “O que querem, afinal, as Mulheres?” Freud se perguntava...

2 de set. de 2008

Nome Próprio (II)

1968-2008. 40 anos do ano mítico de mudança dos costumes, da emancipação da mulher etc. Penso, porém, que mesmo com as muitas transformações e conquistas dos anos 60, minha geração não alcançou o equilíbrio entre a “facilidade” da atividade sexual e a plenitude amorosa e afetiva. Sexo não é um problema para Camila/Leal. Liberdade sexual não é mais a grande questão, como também não é uma dificuldade para as rasas consumistas da série Sex and the City. O que falta a Camila, e a toda a atual geração de jovens, é saber lidar com suas relações. Ela carece de educação amorosa, não sexual...

Camila é autodestrutiva. Quando encontra um bom parceiro, logo em seguida compromete sua felicidade com alguma postura que escapa nossa compreensão e destrói suas possibilidades de se encontrar existencialmente. Esse paradoxo se explica em parte pela incapacidade dos homens a sua volta de serem um refúgio emocional satisfatório. O mundo masculino expressado na tela é interesseiro, mesquinho e insensível. O único porto seguro que Camila encontra é na figura de uma outra mulher e na escrita em seu blog. Há um, digamos, "machismo"- na falta de um melhor termo - que ronda o universo da protagonista, que a asfixia.

Na busca de Camila por uma ordem ao seu caos interno, há o impulso pela escrita. Ela possui um blog onde, sem pudor, expõe sua intimidade para quem interessar. Não acredito que esse impulso seja, essencialmente, um movimento de auto-exposição de sua privacidade. Também é isso, claro, mas Murilo Salles está mais preocupado em refletir criticamente sobre a tecnologia onipresente da Internet. Como disse, Camila tem dificuldades em se relacionar com o mundo humano que a cerca e é sintomático que seu maior porto de consolo não esteja na figura de outro ser humano, mas em uma máquina impessoal.

Diferente do que foi vendido na época de seu desenvolvimento, aos olhos do diretor a Internet não tem sido um veículo de aproximação humana. Muitos dos visitantes do site de Camila fetichizam e desprezam a pessoa e autora do blog. O computador da personagem não a conecta com ninguém, somente com ela mesma. Há excessos em Nome Próprio, mas nele também há um rigor nos temas que o diretor quer pôr em pauta. Por quatro ou cinco vezes, ouvimos o tom de discagem para que Camila se ligue ao universo da web. Só que não há redenção após a conexão, somente a mesma solidão e vazio.