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29 de dez. de 2008

Retrospectiva Nacional - 2008

Não foi um bom ano para o cinema brasileiro. Ano passado, pelo contrário, foi memorável, graças a filmes como Santiago e Jogo de Cena. 2008, no entanto, foi bem fraco. Como prova: Listo e lembro abaixo somente três filmes que acho que merecem o recorte no ano.

(O atual sistema de produção de cinema no Brasil colabora, e muito, para essa escassez de obras mais significativas no período de um ano. Como hoje é realizado o investimento do Estado no cinema do país é de uma burrice paralisante. E enquanto for assim, teremos somente essas migalhas cinematográficas que estréiam todas às sextas-feiras nas salas do Espaço Unibanco. Filmes, a maioria, já pagos pelo dinheiro público e que são vistos só por uma miséria de espectadores.).
Mas bem...Vamos à retrospectiva:

* Serras da Desordem – Andrea Tonacci – Um filme com momentos soberbos. Também de sofisticadíssima riqueza formal. A questão indígena brasileira nunca antes foi tão bem representada (e defendida) como nessa grande obra de Tonacci. Veio para ficar em nossa cinematografia.

* Linha de Passe – Walter Salles & Daniela Thomas – O diretor de Central do Brasil é um grande cineasta. E seu último filme prova isso. Um filme humano, sensível. Uma verdadeira obra de arte.

* Ensaio sobre a Cegueira – Fernando Meirelles – Faço questão que essa produção internacional entre na revisão dos mais importantes filmes brasileiros do ano. Por que Fernando Meirelles - o autor do filme! - é brasileiro, ora. Um excelente diretor brasileiro. Seu filme, mesmo imperfeito, é uma obra com grande força cinematográfica. E com um recado humanista imprescindível para nossos tempos modernos.

27 de dez. de 2008

Retrospectiva Internacional – 2008

Para tentar organizar na mente o que se passou no período de um ano, fazemos listas, revisões... Nem é tanto uma questão de eleger os “melhores”, mas sim peneirar os filmes mais significativos. Buscando pepitas dentro de um rio cheio de pedras sem valor.

* Não estou lá (Todd Haynes) - Original, muito ousado. O camaleônico Bob Dylan interpretado por vários atores que dissecam suas personas. Filmaço. Na forma e no conteúdo.

* Batman – O Cavaleiro das Trevas (Christopher Nolan) – É cinemão sim, e daí? Nolan usa toda aquela parafernália de efeitos para expor suas inquietações sobre o mundo atual. A democracia, o terrorismo. Não é pouca coisa.

* O Escafandro e a Borboleta (Julian Schnabel) – Um filme de afirmação da vida. Emocionante sem ser piegas. Melhor que o livro que deu base ao filme. Grande cinema.

* O Segredo do Grão (Abdelladif Kechiche) – A questão imigratória na europa, resistência cultural. Grandes temas que dão sustentação à história de perseverança de um chefe de família que tenta construir e consolidar seu restaurante. Magnífico, seco, e com grandes interpretações.

* Fatal (Isabela Coixet) – Filme que passou em branco tanto pelo público como pela crítica. Uma obra de rara sensibilidade ao tratar dos dilemas de um maduro intelectual. Merece, sem temor, uma locação em dvd e uma redentora segunda chance.

15 de dez. de 2008

Terra Vermelha

Difícil o ofício do crítico. Sem excesso de vaidade pessoal. Analisar um filme socialmente engajado às vezes é uma cirurgia de risco: Ver criticamente as qualidades estéticas do filme sem desmerecer a relevância do tema que ele traz à tona. Temas fundamentais como, por exemplo, a crônica questão indígena no Brasil, assunto de Terra Vermelha.

Não é bom o filme do italiano Marco Bechis. Regular, no máximo. O formalismo cênico e a ânsia em ser didático na construção dramática das seqüências comprometem o resultado final. Os próprios índios mato-grossenses interpretam sua história de luta contra fazendeiros pela posse da terra. Mas eles não são atores, o que gera um desconforto quando contracenam com profissionais.

O filme não está à altura do tema. Serras da Desordem, de Andrea Tonacci, para dar um exemplo recente de filme que tratava do mesmo problema indígena, foi muito mais longe como linguagem e tinha também mais contundência.

2 de dez. de 2008

Queime depois de ler

Quando o assunto é os irmãos Coen, é preciso encontrar um equilíbrio. Os diretores do oscarizado Onde os fracos não têm vez não são os gênios que “dissecam a América de Bush”, nem uma dupla de cínicos diante de seu país e o mundo. Eles são, na verdade, inteligentíssimos cineastas, com extremo domínio de linguagem e um tipo de humor único. Às vezes fascinante. E com a mediocridade criativa reinando em Hollywood, um novo filme de Joel e Ethan Coen é sempre um bom respiro.

Queime depois de ler é uma comédia que, para se rir dela, é necessário entrar no “tom” adequado. Entender o registro do filme . Os Coen brincam com os gêneros de maneira muito articulada. Por isso, o filme não é nem (ou só) uma sátira, como também não é apenas uma comédia de erros com toques de humor negro. Em algum lugar entre essas classificações se encontra o cinema dos diretores. Um cinema de personalidade.

Para quem, então, conseguir embarcar na história que envolve cirurgia plástica, mal entendidos conspiratórios e mais uma série de personagens inusitados poderá se divertir imensamente. E também encontrará, sim, críticas aos valores que imperam nos Estados Unidos e no resto do planeta globalizado: A obsessão estética, a paranóia, a imbecilidade da cultura de massas. Nada que renda uma tese de mestrado sobre o filme. Mas dá para gargalhar com suas sutilezas e atuações inspiradas.

24 de nov. de 2008

Romance

Após se exercitar em comédias tanto na televisão como no cinema, o diretor Guel Arraes arrisca uma história de amor mais autoral e cheia de metalinguagem. Quanto há de verdade num caso amoroso? Qual a parcela de representação numa declaração apaixonada? Ficção versus realidade. Arte e vida num emaranhado de difícil desato. Boas propostas, mas que ficam a dever no resultado final. Falta sal e sobra açúcar no novo filme do cineasta pernambucano.

Os dilemas de paixão e amor permeiam o filme, mas não envolvem o espectador. O texto é bem pensado e inteligente, mas fica sem vida na boca dos atores. Que são bons, porém engessados. Uma fotografia edulcorada e uma trilha melosa não ajudam também o filme de Arraes. Um diretor que merece respeito por conseguir qualidade e apelo popular em O Auto da Compadecida e Lisbela e o Prisioneiro, mas que não chega lá em seu Romance.

17 de nov. de 2008

Vicky Cristina Barcelona

Woody Allen é um cineasta contemporâneo, no sentido mais amplo do termo. Homem curioso e atento ao mundo que o cerca. Um tema atualíssimo como a cobiça material, por exemplo, foi o eixo central de dois de seus últimos filmes: Match Point e Sonho de Cassandra. Em sua nova obra, Allen discorre novamente sobre assuntos que no dia de hoje (!) inquietam nosso ser e estar no mundo.

O cineasta nova-iorquino é ainda um dos maiores do cinema. E um dos motivos para isso é que ele sabe muito bem reinventar-se como artista. Não repete fórmulas ou teses sobre assunto nenhum. Pode haver, claro, recorrências temáticas. Mas o que muitos críticos não se dão conta é que cada filme seu é uma obra singular, que merece sempre olhos frescos e respeitosos.

Não deve haver rótulos a diretores de cinema, por que engessam as possibilidades para novas leituras sobre suas obras. No caso de Allen, o que há ao acompanhar sua carreira é constatar o amadurecimento contínuo de sua visão sobre o cinema, o amor, a vida. E Vicky Cristina Barcelona é reflexo de tudo isso. É bobagem repetir a cada ano que seus filmes não ficam “aos pés” de suas obras-primas dos anos 80.

Vicky Cristina Barcelona é um ótimo filme. Sutil, inteligente. Muito engraçado. A mudança de ares do cineasta (é seu 4º filme rodado na Europa) só tem ajudado sua arte. Refletir sobre o amor e seus atuais conceitos e dilemas... Esse é o maior anseio do diretor, ao contar a história de duas amigas norte-americanas, Vicky (Rebecca Hall) e Cristina (Scarlett Johansson), que em Barcelona embarcam numa roda viva de novas experiências amorosas junto de um pintor de telas sedutor (Javier Bardem), e sua ex-esposa neurótica (Penélope Cruz).

13 de nov. de 2008

Rocknrolla

Guy Ritchie volta ao submundo inglês de seus primeiros filmes. Retorna ao universo de traições e mal-entendidos que fez a fama do cineasta no final dos anos 90. Em Rocknrolla, assim como em Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes e Snatch, Ritchie constroe uma brilhante teia de interesses e desinformações. Quase uma comédia de erros movida pela ganância de variados grupos étnicos e criminosos. De narrativa ágil e inventiva, o novo filme do cineasta dá um passo além em qualidade na obra do diretor, e consegue ser mais denso que seus filmes anteriores.

Nas entrelinhas do enredo bem articulado de Rocknrolla há um fascinante distanciamento em relação a esse universo de Sexo, Drogas e Rock & Roll. Um dos trunfos do filme é esteticamente(posição da câmera, luz, trilha..) alcançar uma relação crítica com o que é mostrado na tela. Seja na tortura de um chefão do crime, ou na desmistificação de um usuário de crack fumando sua pedra.

Para quem tiver sensibilidade para notar, verá que todo o filme é amarrado em função de uma obra de arte, um quadro que nunca é mostrado de frente ao espectador. Uma pintura com suas implicações não só práticas para o roteiro, mas filosóficas, é o que move a narrativa e o que dá margem para justificar uma atenção apurada a este filme.

Sementes muito interessantes foram lançadas neste Rocknrolla. Grãos que devem frutificar com mais clareza ao longo da trilogia que esse filme dá início. Um projeto já em elaboração por Ritchie. Mesmo que, talvez, menos cativante e engraçado que seus filmes anteriores, Rocknrolla merece atenção redobrada daqueles que erroneamente convencionaram desprezar o “cinema de Hollywood”.

11 de nov. de 2008

O Silêncio de Lorna

Os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne seguem firmes em seu projeto estético-humanista. Ao mesmo tempo rigoroso e despojado, o mais recente filme dos cineastas belgas é exemplo do mais refinado tratamento dramatúrgico. Pois não foi com um manual de roteiro hollywoodiano debaixo do braço que se construiu filme com tamanha contundência e sensibilidade.

Lorna (Arta Dobroshi) é a imigrante albanesa que se casa por conveniência e contrato ilegal com um belga viciado em heroína (Claudy), visando assim conseguir a cidadania européia. Dentro de um submundo de casamentos forjados, de aspereza humana e ética, Lorna deve lidar com cautela suas ambivalências e desejos pessoais. Resistindo como pode ao mundo embrutecido que a cerca.

Não há personagens rasos no cinema dos Dardenne. Tanto a protagonista, como as outras peças desse enredo, são todas dotadas de complexidade e nuanças. E é fundamental para o resultado final o primor das interpretações de seus atores. Como Lorna, Arta Dobroshi é de uma entrega fascinante.

Grandes temas atuais embasam o filme: A questão da imigração clandestina na Europa, dependência química, a obsessão pelo dinheiro. Mas todos eles refletidos no pano de fundo da história da jovem imigrante. O Silêncio de Lorna é um dos mais interessantes filmes recentes. Consegue ser tão bem equilibrado como a anterior obra dos diretores, A Criança, ganhador da Palma de Ouro em 2005. Belo cinema.

7 de nov. de 2008

Última Parada 174

Não há razão para o novo filme de Bruno Barreto existir. Após obras nacionais como Pixote, Cidade de Deus e do documentário Ônibus 174, Última Parada nada contribui para a história de nosso cinema ou para o debate social do país. Uma verdadeira nulidade cinematográfica.

Após dezesseis longas metragens, já era hora de Bruno Barreto ter aprendido a fazer cinema. Este seu último filme mais parece a estréia de um novato atrás das câmeras. Com um roteiro esquemático, previsível, e com uma montagem irritantemente linear, talvez somente do protagonista possa se extrair algum adjetivo positivo. Temas como maternidade, mídia e criminalidade aparecem aqui e ali, mas são tratados de maneira rasa e pouco convincente.

Muitos são os equívocos de Última Parada 174. Erros conceituais que vem desde a gênese do projeto. Porém o cineasta peca principalmente pelo excesso de piedade ao contar a história do garoto Sandro, assassinado por policiais após seqüestro de ônibus no Rio de Janeiro. Piedade tacanha, Sr. Barreto, não serve para nada!

29 de out. de 2008

O Aborto dos Outros

Um tema delicado. Não só quando tratado num documentário como este, mas o aborto é questão que gera debates acalorados em qualquer instância. A jovem diretora brasileira Carla Gallo lida com sensibilidade um assunto tão espinhoso. E além do tema propriamente dito, o aborto, Carla realizou uma obra sobre a mulher e seus dilemas com a maternidade. O que enriquece o valor de seu filme.
Tendo como linha mestra entrevistas com mulheres que passaram pela experiência em hospitais públicos - previstos em lei ou autorizados judicialmente - , o filme também denuncia as condições de abortos clandestinos.

O Aborto dos Outros defende de maneira clara, mas não panfletária, uma postura pró-aborto. Nos momentos finais do documentário, “autoridades” no assunto ratificam o ponto de vista da diretora a favor da urgência de uma política mais adequada sobre a questão no Brasil. Mesmo um tanto irregular, é filme que vale ser visto. De linguagem seca e dura, mas que possui em sua essência humanidade e humanismo.

HSBC Belas Artes – 14:10h.

13 de out. de 2008

Fatal

O melhor filme da diretora catalã Isabela Coitex, seguramente. Após os sensíveis Minha vida sem mim e A vida secreta das palavras, Fatal (Elgy), baseado no romance do norte-americano Philip Roth (Dying Animal) continua a falar daquilo que mais atrai a cineasta: Relacionamentos humanos.

David Kepesh (Ben Kingsley) é o renomado professor de literatura que vive os dilemas do envelhecimento. Aparentemente seguro de si, prefere distância a relacionamentos mais densos até se apaixonar pela jovem aluna Consuela (Penélope Cruz). Promessas de amor versus a inevitabilidade da passagem do tempo afligem esse homem que se achava tão maduro, mas que se descobre ainda um adolescente no desvendar de sua personalidade.

Isabela Coitex é uma artesã de sentimentos. Ela realiza com maestria aquilo que para Walter Benjamim deveria ser a tarefa do narrador, em seu ensaio de mesmo nome: “A antiga coordenação da alma, do olhar e da mão [...] é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada. Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e sua matéria – a vida humana – não seria ela própria uma relação artesanal. Não seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência – a sua e a dos outros – transformando-a num produto sólido, útil e único?”.

Excelentes interpretações, com destaque para Ben Kingsley, colaboram para que o filme alcance tamanha coesão. Requintes de poesia no tratamento das imagens e a edição leve corroboram para certificar uma maturidade cinematográfica invejável. Vale a pena acompanhar com olhos atentos carreira que voa com nitidez.

25 de set. de 2008

Ensaio sobre a cegueira

O espírito do livro está no filme. Como deve ser as boas adaptações de livros para as telas, Fernando Meirelles reinventa a obra para manter-se fiel ao autor. Como no livro de Saramago, temos uma fábula contemporânea sobre nossa incapacidade de ver.

A história é tênue. Sem motivo, repentinamente, o mundo está cego. Apenas a personagem de Julianne Moore mantém sua visão. Ela não possui nome ou passado, como todas as demais figuras principais. Um casal, um senhor negro, uma criança...

Meirelles realizou não só um recontar do enredo, mas buscou nas especificidades do cinema realizar uma obra de força em si. Som, música, edição. Artifícios de linguagem que o diretor domina como poucos. A fotografia de César Charlone, que desconstrói a imagem para melhor captar a impressão de perda da visão e a cegueira branca, é corajosa e de personalidade.

Há, sim, problemas de roteiro. Ensaio... é um tanto desequilibrado, principalmente na primeira meia hora de projeção. Nesse início, falta aos personagens despertar a empatia indispensável para nos envolvermos com o que se passa. Mas logo o envolvimento ocorre, junto com a força que o filme possui.

Quase no final do filme, há uma cena emblemática: na cidade já imunda e decadente, a chuva cai. Homens e mulheres se deixam encharcar em busca não só de limpeza, mas de redenção. Em tempos de brutalidade latente, a civilização clama por purificação.

Como no livro de Saramago, deve-se perder a visão para voltar a enxergar. Diz a mulher do médico (persongem de Julianne) para seu esposo, no final do livro: “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vem, Cegos que, vendo não vêem”.

9 de set. de 2008

Linha de Passe

Uma família da periferia de São Paulo. Quatro irmãos de pais diferentes buscam melhores perspectivas. A mãe, solteira, doméstica e grávida. Não há um pai que complete esta família no novo filme de Walter Salles, Linha de Passe, co-dirigido por Daniela Thomas. A orfandade paterna e suas complicações continuam perseguindo o cinema dos dois diretores. Terra Estrangeira, Central do Brasil, Abril Despedaçado. Nesses filmes a figura paterna é ausente, motivo de busca ou centro dos conflitos do protagonista. Em Linha de Passe, cada um dos irmãos se desdobra de uma forma para lidar com ausência familiar tão fundamental.

Dario (Vinicius de Oliveira), sonha ser jogador de futebol. Dinho (José Geraldo Rodrigues), evangélico, é frentista num posto de gasolina; Dênis (João Baldasserini), motoboy, não vê futuro em si próprio; e Reginaldo (Kaique Jesus Santos), o menor, busca o pai que desconhece. Este caçula empreende a mesma jornada de Josué em Central do Brasil. E assim como em Cidade dos Homens, de Paulo Morelli, esse pai inexistente é metáfora de um País órfão de instituições capazes de acalentar suas contradições.

Walter Salles é cineasta herdeiro do Cinema Novo dos anos 60. Possui um olhar para o Brasil e seus marginalizados. Porém sem o esquematismo que marcou produções de Glauber Rocha, Cacá Diegues e outros. Salles dá a seus personagens complexidade, nuanças. Temas como religião e futebol não são tratados na tela como alienantes. Entender, e não esteriotipar, é o foco do diretor.

Na cartilha marxista de Os Fuzis (1963), de Ruy Guerra, há uma cena inicial emblemática: Uma nordestina idosa diz em depoimento que ficou cega no dia em que morreu Getúlio Vargas. Ou seja, a partir do momento que nosso maior pai político faleceu perdemos a visão, o rumo de nação. Nossa orfandade política, comprova Linha de Passe, permanece. Um filme maduro, belo e intenso.
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crítica de cinema publicada na revista Pipoca Moderna - Ed. 41.

6 de set. de 2008

Nome Próprio (III)

Em Nome Próprio forma e conteúdo andam, na maior parte do tempo, casadas de maneira muito interessante. Sua estética é autoral, feliz, e pouco pedante. Não posso admitir que alguém me diga que talvez Nome Próprio tenha sido realizado para satisfazer o umbigo de Salles. O filme está aberto a se comunicar com aqueles que querem ouvir sua canção. Camila é uma incógnita para o diretor e ele compartilha seus enigmas conosco. Difícil não ver altruísmo nisso.

Assim como em Como nascem os anjos e Nunca fomos tão felizes, filmes anteriores do diretor, Nome Próprio passa-se preponderantemente dentro de uma mesma locação: Um apartamento. Se Camila já cria barreiras para si própria, a claustrofobia de quatro paredes nos leva a um desconforto que é positivo para as intenções do filme. A longa duração de algumas cenas pode mesmo ser interpretado como um “excesso” de Salles, mas esse mesmo excesso colabora para compartilharmos a dor que transborda em Camila.

Algo parecido pode ser dito sobre o teor das interpretações do filme. Leandra Leal me parece realmente irretocável, mas tem sido comum ouvirmos comentários negativos em relação às interpretações do elenco masculino. Elas seriam “over”, exageradas. Penso diferente. Nome Próprio, através principalmente da seqüência final, dá margem para pensarmos que o que vemos no filme nada mais é do que a visão de mundo de Camila. A subjetividade da personagem é a essência do filme!

Não podemos duvidar da inteligência do diretor em querer transformar em proposital um registro de interpretação cheio de singularidade. A chave de interpretação do filme é algo dos mais interessantes na recente cinematografia nacional. Os personagens masculinos são todos um pouco “personagens deles próprios”. Playboys imaturos cheios de grosseria e vaidade. Ora, essas são as máscaras que Camila vê em todos os garotos que conhece. Ficção e “realidade” convergem na mente da protagonista, ela relê o mundo a sua volta.

Camila segue bem as palavras do poeta Ferreira Gullar que não se cansa de dizer: A vida é uma invenção, você escolhe se quer fazer dela uma coisa alegre ou se prefere que seja uma droga. Daí não dá pra deixar de emendar com a já mil vezes repetida frase de Cecília Meireles: A vida só é possível se reinventada. Porque não existe a vida, existe o caos, que você monta como achar melhor...

Há algo do romance Reparação, de Ian McEwan, em Nome Próprio. Algo da jovem Briony Talles em Camila. Quais são os prejuízos do excesso de imaginação? E quanto a mesma imaginação e arte podem auxiliar-nos na “reparação” e reconstrução do mundo, de nós mesmos? Qual a função da arte escrita para Camila se reerguer, se reinventar? Para ela se encontrar como Mulher? ... “O que querem, afinal, as Mulheres?” Freud se perguntava...

2 de set. de 2008

Nome Próprio (II)

1968-2008. 40 anos do ano mítico de mudança dos costumes, da emancipação da mulher etc. Penso, porém, que mesmo com as muitas transformações e conquistas dos anos 60, minha geração não alcançou o equilíbrio entre a “facilidade” da atividade sexual e a plenitude amorosa e afetiva. Sexo não é um problema para Camila/Leal. Liberdade sexual não é mais a grande questão, como também não é uma dificuldade para as rasas consumistas da série Sex and the City. O que falta a Camila, e a toda a atual geração de jovens, é saber lidar com suas relações. Ela carece de educação amorosa, não sexual...

Camila é autodestrutiva. Quando encontra um bom parceiro, logo em seguida compromete sua felicidade com alguma postura que escapa nossa compreensão e destrói suas possibilidades de se encontrar existencialmente. Esse paradoxo se explica em parte pela incapacidade dos homens a sua volta de serem um refúgio emocional satisfatório. O mundo masculino expressado na tela é interesseiro, mesquinho e insensível. O único porto seguro que Camila encontra é na figura de uma outra mulher e na escrita em seu blog. Há um, digamos, "machismo"- na falta de um melhor termo - que ronda o universo da protagonista, que a asfixia.

Na busca de Camila por uma ordem ao seu caos interno, há o impulso pela escrita. Ela possui um blog onde, sem pudor, expõe sua intimidade para quem interessar. Não acredito que esse impulso seja, essencialmente, um movimento de auto-exposição de sua privacidade. Também é isso, claro, mas Murilo Salles está mais preocupado em refletir criticamente sobre a tecnologia onipresente da Internet. Como disse, Camila tem dificuldades em se relacionar com o mundo humano que a cerca e é sintomático que seu maior porto de consolo não esteja na figura de outro ser humano, mas em uma máquina impessoal.

Diferente do que foi vendido na época de seu desenvolvimento, aos olhos do diretor a Internet não tem sido um veículo de aproximação humana. Muitos dos visitantes do site de Camila fetichizam e desprezam a pessoa e autora do blog. O computador da personagem não a conecta com ninguém, somente com ela mesma. Há excessos em Nome Próprio, mas nele também há um rigor nos temas que o diretor quer pôr em pauta. Por quatro ou cinco vezes, ouvimos o tom de discagem para que Camila se ligue ao universo da web. Só que não há redenção após a conexão, somente a mesma solidão e vazio.

26 de ago. de 2008

Nome Próprio (I)

Há uma anedota que se conta entre os psicanalistas. Sigmund Freud, após décadas dedicadas ao estudo de nosso inconsciente, morreu sem responder a pergunta que mais o angustiava: “O que querem, afinal, as Mulheres?”. A literatura nos dá algumas dicas sobre o assunto nas obras de Virgínia Wolf, Clarisse Lispector. No Cinema, Bergman e Woody Allen nos deram mais algumas sugestões para, atrevidamente, ousarmos tatear tamanho mistério que é o mundo feminino.

Nome Próprio, de Murilo Salles, tenta cavar um pouco mais fundo na busca dessa “tristeza de se saber Mulher” que disse Vinícius de Moraes em seu Samba da Benção. Nome Próprio é um filme que eu definiria como corajoso. Valente porque arrisca uma reflexão sobre a juventude. Sobre uma geração que não é a do diretor. A geração jovem atual, do vazio ideológico e utópico.

Neste ano de 2008, talvez somente Batman-O Cavaleiro das Trevas, que eu me lembre, tenha provocado mais minha geração com suas críticas à nossa Democracia fajuta e ao Estado de Ordem em que (não) vivemos. Nome Próprio também provoca, só que num âmbito mais afetivo, menos político. Um filme de uma força que um olhar apressado pode desaperceber.

Em sua primeira cena, a personagem principal Camila/Leandra Leal está totalmente desnuda. Salles, na apresentação de sua anti-heroína, prova já seu objetivo maior: Dissecar essa blogueira auto–destrutiva, cheia de angústia em frente de seu computador inanimado. Temos, então, um filme de estudo de personagem. Feminino, além de tudo.

Com tudo isso, não quero dizer que Nome Próprio seja um grande filme. Não é. O filme chega quase lá. Não chega a um estatuto de Gritos e Sussurros, por assim dizer. Mesmo tendo uma câmera vigorosa, Nome Próprio peca pelo excesso, pela falta de objetividade. Mas não significa que não valha a pena dar um olhar mais apurado em seu potencial, que existe, sim. (continua)...

6 de ago. de 2008

O Escafandro e a Borboleta (II)

Desde que li o livro em que o filme se baseia, queria muito compartilhar alguns trechos que de alguma forma me tocaram. Ia fazer isso logo após o post sobre o filme, só que aí veio o novo Cavaleiro das Trevas, com seu Coringa anárquico, e mudou a ordem das coisas, meu plano inicial...

Mas, agora sim, e com calma, selecionei algumas linhas do canto de vida de Jean-Dominique Bauby. Se você ainda não viu nos cinemas esta maravilhosa adaptação, presenteie-se com essa experiência! E leia também o livro, recém reeditado pela Martins Fontes. Um vôo “comovente, de um escritor extraordinariamente talentoso, conta como transformar dor em criatividade, desespero humano em milagre literário”, nas palavras de Elie Wiesel na orelha da obra.

“O escafandro já não oprime tanto, e o espírito pode vaguear como borboleta. Há tanta coisa para fazer. Pode-se voar pelo espaço ou pelo tempo, partir para a Terra do Fogo ou para a corte do rei Midas”. (pág. 09).

“Por ora, eu seria o mais feliz dos homens se conseguisse engolir convenientemente o excesso de saliva que me invade a boca sem parar”. (pág.16).

“Foi assim que deparei com o farol numa das primeiras vezes em que empurravam minha cadeira de rodas, logo depois que saí das brumas do coma. [...] Imediatamente me pus sob a proteção desse símbolo fraterno que vela pelos marinheiros e pelos doentes, estes náufragos da solidão”. (pág. 33/34).

“Quanto ao prazer, apelo para a lembrança viva de sabores e odores, inesgotável reservatório de sensações. Não existia a arte de bem aproveitar os restos? Eu cultivo a de cozinhar lembranças em fogo lento”. (pág. 40).

“Afasto-me. Lenta mas decididamente. Assim como o marinheiro vê desaparecer a costa de onde zarpou para a travessia, eu sinto meu passado esvanecer-se. Minha antiga vida arde ainda em mim, mas vai-se reduzindo cada vez mais às cinzas das lembranças”. (pág. 83).

3 de ago. de 2008

Era uma vez...


Se dissesse que o filme é bom estaria sendo complacente com um diretor que ainda tem meu respeito. Não é um filme memorável, longe disso. Mas isso não impede de lembrar algumas qualidades que possui Era uma vez..., um romance à Romeu e Julieta entre um jovem do morro e uma garota da elite do Rio de Janeiro.

Sempre tento “defender” 2 filhos de Francisco, o primeiro filme do diretor. Acho que lá se atestava o talento de Breno Silveira para esmiuçar relações familiares, aparentemente um dos seus temas preferidos em carreira que ainda floresce. A história de luta e sucesso dos insossos Zezé de Camargo e Luciano mostrava habilidade narrativa e sensibilidade na direção de atores. Algo raríssimo no Cinema nacional de antes e de sempre.

As qualidades apresentadas em seu primeiro filme acabam sendo as principais virtudes do filme que estreou semana passada. Um roteiro bem amarrado (mesmo que previsível), personagens críveis e interpretações convincentes. Aliás, o que Era uma vez... talvez possua de melhor é mesmo seu protagonista Thiago Martins, garoto de carisma inegável. Os momentos de seu personagem com o irmão (Rocco Pitanga) são luminosos. Pena que o filme não se sustente tão bem em outros momentos.

A vontade de ser didático, o que acarreta um certo esquematismo, é o maior problema do filme. A ingenuidade da parte final me parece quase imperdoável. O Cinema não precisa apontar soluções para problema algum, mas a questão da violência no Rio e no Brasil é muito mais complicada do que sugere a simplicidade do desfecho.

24 de jul. de 2008

O Cavaleiro das Trevas (IV)

James Gordon – Em Batman Begins ele era aquele que punha a mão no fogo pelo herói. Dava-lhe sua confiança na luta contra o crime. No primeiro filme, o tenente Gordon era um idealista solitário, carente de companhia ética. Faltava-lhe uma força-tarefa contra a corrupção, que só aparece com a chegada do homem-morcego a Gotham.

Em O Cavaleiro das Trevas temos um homem mais pragmático. Calejado, talvez. Parece que Gordon tomou o mesmo banho de realidade que Harvey Dent, só que de maneira bem menos trágica. Em seu próprio departamento, Gordon sabe que nem todos os seus subalternos são pilares de moralidade, o que ameaçará a segurança de sua própria família nos momentos finais do filme. Da mesma forma que Batman, Gordon não se incomoda em usar meios pouco ortodoxos para conseguir o que quer. Como se não fosse possível lutar por justiça sem colocar as mãos na lama, ou governar sem ter que subornar parlamentares em troca de apoio.

Alfred – Foi só vendo o filme pela terceira vez que me ficou claro a importância deste coadjuvante encantador. Ele é a figura paterna, a voz da sabedoria. Um exemplo de fidelidade, cumplicidade e compaixão para com seu empregador. Junto com o personagem de Morgan Freeman, Lucius Fox, Alfred é a luz humana que impede O Cavaleiro das Trevas de ser uma obra exageradamente pessimista.

A atuação de Michael Caine é tocante, mínima, mas precisa. Ator e personagem se confundem na dignidade exigida pelo papel. Novamente como Lucius, Alfred é alguém que está acima do bem e do mal. Um mordomo que pode se dar ao luxo de omitir a verdade a Bruce Wayne, justamente pensando na felicidade dele.

Lucius Fox - Como o mordomo Alfred, o personagem de Morgan Freeman possui o mais humano de todos os dons: o senso de humor. Diante de tanta tensão e violência em O Cavaleiro das Trevas, Lucius nos aliviará com sua sagacidade e mansidão.

Ao ver o novo dispositivo criado por Batman para espionar todos os cidadãos de Gothan à 1984, Lucius diz: “É muito poder para um homem só”. No que Batman responde: “É por isso que só você pode controlá-lo”. Impossível pensar em elogio maior à nobreza deste parceiro que equilibra as decisões do protagonista. Lucius Fox é a consciência perdida naqueles que democraticamente votaram e decidiram pela explosão do barco ao lado, cheio de criminosos.

Rachel Dawes
– Como era o “leitor” em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o único senão do filme é ninguém menos que Maggie Gyllenhaal, a atriz na pele da advogada Rachel Dawes. Canastrona de primeira grandeza, Gyllenhaal causa uma verdadeira repulsa quando aparece na tela. Nada contra a personagem em si, mas a atriz não é bonita, não tem carisma ou simpatia. Um horror! Sua maior qualidade é que lá pelas tantas ela morre junto com a personagem...

23 de jul. de 2008

O Cavaleiro das Trevas (III)


Harvey Dent/Duas Caras – Em O Médico e o Monstro, de Robert L. Stevenson, há um capítulo final com o relato do próprio Dr. Jekyll com conclusões sobre as experiências que o transformavam no inescrupuloso Mr. Hyde. Diz ele em uma parte do texto, cheio de angústia:

"A cada dia, e de ambos os lados da minha inteligência – o moral e o intelectual – eu chegava cada vez mais próximo daquela verdade cuja descoberta parcial tinha-me condenado a um terrível fim: a de que o homem não é apenas um, mas sim dois. Eu digo dois porque meu conhecimento não vai além desse ponto. (...)... e eu arrisco a suposição de que, ao final, o homem será firmemente conhecido com um mero estado multifacetado, incongruente...” (L± pág. 96.)

Dentro da subversão que faz Christopher Nolan das costumeiras adaptações dos quadrinhos para as telas, está a representação multifacetária de seus personagens. E, talvez, em Harvey Dent tenhamos o melhor exemplo dessa ambigüidade que permeia o filme. Nem preto nem branco. Em O Cavaleiro das Trevas, temos um mundo acinzentado. Sem vilões absolutos ou heróis incorruptíveis. Se antes tínhamos a destreza moral sem nuanças dos super-heróis, temos agora não somente as duas faces de uma ordem moral, mas sim, nossos muitos rostos e máscaras. Por mais que o personagem de Duas Caras possua uma iconografia uma tanto esquemática, de dois rostos, um natural e outro desfigurado.

Harvey Dent possui uma dimensão trágica. Até quase o final do filme, é o mais íntegro de todos os personagens. É o Cavaleiro Branco sem máscara que Gotham necessita, em detrimento do justiceiro mascarado. Mas é também aquele que mais perde no jogo de dados do acaso. Ele perde a mulher que ama, a causa que professa e mais que tudo, a esperança de que um comportamento ético, decente e moral pudesse ser a melhor arma de resistência contra um mundo corrupto. Suas frustrações são com a impossibilidade de se fazer justiça com as mãos limpas, da decepção diante de um Estado de Direito incompetente e consigo mesmo. Coringa o mostra, naquela grande cena entre os dois no hospital, que nosso mundo é injusto, de que nem sempre boas intenções geram o tão esperado final feliz com direito a casamento, filhos e netos...

Transformando-se de Harvey Dent para Duas Caras, o advogado paladino à Eliot Ness torna-se a maior vitória do Coringa. A prova da tese do palhaço de que basta um “empurrãozinho” para virarmos bárbaros e nossos maiores inimigos. Coringa pode ter sido preso, não ter conseguido “sucesso” em seu “experimento social” nos barcos que não se destroem, mas sua última carta na manga é a conversão do criminalista em criminoso.

Dentro de uma concepção de herói mais tradicional, ou seja, aquele que se sacrifica por outro(s), Harvey Dent é o mais próximo do heroísmo em todo filme. Seu altruísmo cheio de benevolência aparece no mínimo três vezes. Primeiramente em sua cruzada a favor de Gotham, lutando pela justiça de maneira icônica. Depois, assume ser o próprio Batman, tomando para si os pecados do justiceiro mascarado e fazendo a vontade da maioria de Gothan. E por último, e talvez o mais doloroso, há o sacrifício que se dá a favor de Rachel Dawes. Nosso caro Harvey estava disposto a dar sua vida, se isso resultasse na sobrevivência da mulher que amava. É doloroso acompanhar tamanha jornada que acaba em ceticismo e desespero.

Harvey Dent/Duas Caras é a “chave” do filme. O personagem que ilustra melhor os objetivos do Coringa. Nele está a crueza do filme, pois exemplifica o beco sem saída a que chegamos. Che Guevara disse certa vez que não se faz revolução antes dos trinta anos. Será que a passagem do tempo nos torna mais embrutecidos, desesperançados? É ingênuo tomarmos como exemplo a postura inicial de Harvey Dent, já que o destino inevitável está na desilusão e no vácuo ideológico? Acho que poucas vezes um personagem expressou tão bem o sentimento que ronda o mundo pós-queda do muro de Berlim, pós-renúncia de Fidel. Um mundo sem utopias. Em que a linha entre a corrupção e o “bom negócio” se torna cada vez mais estreita.

22 de jul. de 2008

O Cavaleiro das Trevas (II)

Coringa - Ele não quer dinheiro, ou mesmo notoriedade. Não é explicável através de uma psicologia barata e reducionista, em que traumas infantis poderiam solucionar tamanha brutalidade. Como Anton Chigurh, o matador interpretado por Javier Bardem em Onde os fracos não tem vez, o Coringa de O Cavaleiro das Trevas não possui origem ou motivações fáceis.

Ele é o agente do caos. Cuja razão de existência é desmascarar a fragilidade da “ordem”. Apontar as feridas abertas como sociedade. Esfregar em nossas faces a linha tênue que separa a normalidade da vilania, o politicamente correto das áreas mais soturnas de nós mesmos. A cena dos barcos, que ele chama de “experimento social”, é o emblema daquilo que também quis fazer Lars Von Trier em seu Dogville: Queimar as cortinas da amabilidade. Desnudar o egoísmo que tem consumido o planeta em tempos globalizados.

Coringa é o lado B do próprio Batman. A face queimada da moeda de Harvey Dent/Duas Caras. Tememos o novo Coringa porque sua retórica é precisa e assustadoramente lógica. Não quero ser mal interpretado, mas acredito que Coringa está longe da “insanidade”. Às vezes ele é são até demais, e é isso que nos amedronta ao ver o filme.

Não há um vilão convencional em O Cavaleiro das Trevas. O filme (o mundo) é bem mais complicado que isso. Coringa é um catalisador, a vanguarda que questiona os valores estabelecidos. No embate final com Batman a câmera vira de ponta cabeça, enquanto Coringa faz seu último discurso a favor da anarquia. Utilizando-se de um recurso de linguagem tão “primário”, Nolan exemplifica com perfeição quem é este homem fantasiado. Aquele que quer virar o mundo de cabeça para baixo. Virá-lo às avessas. Há algo de Antônio das Mortes, o matador de Deus e o Diabo na Terra do Sol em Coringa. Um personagem à frente (fora?) de seu tempo.
Nolan não dá respostas em seu filme, e nem precisa. Batman-O Cavaleiro das Trevas é uma grande provocação pós-moderna para aqueles que vendem a Democracia como o último estágio e possibilidade única de organização política. Disse em post anterior, quando escrevia sobre O Escafandro e a Borboleta, que o Cinema ainda engatinha, com míseros 113 anos. Pois este filme veio à tona para lembrar-nos que a Civilização também dá os seus primeiros passos, e que a Democracia é cheia de fraturas de uma estrutura óssea que pode vir abaixo com um simples “empurrãozinho” deste palhaço macabro.

21 de jul. de 2008

O Cavaleiro das Trevas (I)

A seqüência de Batman Begins é um filme que muito me angustia. Um amigo até pensou que meus suspiros no meio da sessão eram de insatisfação diante do filme. Era justamente o inverso. Batman-O Cavaleiro das Trevas é de uma complexidade e crueza que inquieta todos aqueles que refletem sobre dias tão sombrios, incertos e ambíguos como os nossos.

O brilhante filme de Christopher Nolan é uma aguda reflexão sobre o mundo pós-11 de setembro. Regido pelo medo, intolerância, pela desconfiança perante as instituições, por inimigos invisíveis e incompreensíveis. Um mundo em trevas. Nolan não fez um filme sobre um super-herói, mas sobre qual herói necessitamos, ou devemos (não) ter. É um filme para gente grande, para se ver sem pipoca.

Considerando a complexidade do filme, tentarei fazer um texto um pouco diverso dos que tenho escrito. Ao invés de uma resenha com início, meio e fim, dividirei algumas idéias primeiramente sobre os personagens do filme e depois sobre o que acredito ser seus principais temas.

Batman – No novo filme, ele não pode ser mais o herói forjado no primeiro. Ele deve se reinventar. Sua existência alterou a ordem e dimensão dos problemas de Gotham. O que era originalmente para ser uma “inspiração” de luta do bem e pela justiça foi transfigurado pelos cidadãos em um símbolo quase de revanchismo, de luta com as próprias mãos contra o crime. E, o mais importante, uma luta acima das leis do estado democrático. Batman deve agora lutar contra um estado de coisas do qual ele mesmo é responsável por sua gênese. E a figura e o resultado mais assustador dessa alteração criada pelo próprio herói é o surgimento de um criminoso sem motivações óbvias, um anarquista agente do caos chamado Coringa.

A situação de Batman, portanto, é insustentável. Ele nem inspira, muito menos representa essa sociedade em transformação. Ele é um fora-da-lei. Um milionário excêntrico debaixo de uma fantasia sofisticada. Se o primeiro filme foi sobre a gênese do herói, O Cavaleiro das Trevas é a revisão crítica de sua figura. Como seres pensantes, não podemos aceitar as condutas de Batman como se fosse ele um herói convencional e incorruptível. Em certos momentos suas atitudes podem ser tão questionáveis quanto as do Capitão Nascimento de Tropa de Elite. Os fins justificam os meios? Pergunta Christopher Nolan para nós, espectadores.

Em uma sessão de interrogatório, nosso “herói” esmurra seu depoente em busca de informações. Em outro momento, quebra as pernas do líder da máfia. No clímax do filme, utilizando um recurso tecnológico que nos remete às profecias de Orwel em 1984, Batman abusa de seus poderes subvertendo as liberdades individuais e democráticas. Ele passa a ouvir e vigiar todos os habitantes. Queremos realmente um justiceiro dessa natureza? Ainda resta alguma outra possibilidade para a justiça dentro da lei? O próprio homem-morcego possui distanciamento para enxergar sua postura como duvidosa.

Diante dessa necessidade de repensar seu papel como símbolo, Batman vai a busca de um outro herói possível, mais compatível e competente com a realidade que o cerca. Ele o encontra em Harvey Dent, paladino irrepreensível em busca da justiça.

Como muito bem disse um outro amigo meu, Batman/Bruce talvez nem seja o convencional protagonista do filme. Seu tempo em cena é quase equivalente às demais peças do tabuleiro de Cavaleiro das Trevas como Harvey Dent (a “chave” do filme, como veremos), Coringa e o comissário Gordon. Quatro personagens do filme que tentarei esmiuçar ao longo da semana. Para logo em seguida tentar expor sobre o que acho que são os temas e objetivos deste grande e provocativo filme.

Caro leitor. A ida ao cinema para conferir Cavaleiro das Trevas é quase imperativa. Para mim, a melhor adaptação (subversão?) de um HQ da história do Cinema! Vá ver. E até o próximo post.

20 de jul. de 2008

O Escafandro e a Borboleta

Toda a regra deve ter sua exceção. Pensava realmente em não escrever em julho, numa tentativa de “desburocratizar” a própria vida. Não ser “síndico de mim mesmo” como dizia Tom Jobim. Mas... nesse meio tempo vi alguns filmes que muito me emocionaram e despertaram o desejo de voltar a este espaço. O anseio por comunicação falou mais alto. Então, estamos de volta! E, por enquanto, sem novos recessos à vista...

O Cinema constantemente é lembrado como uma arte que dá vida aos sonhos, asas à imaginação, etc. Nem sempre essas denominações conferem com os filmes que vemos, principalmente no que se refere ao mundo dos sonhos, ainda tão pouco explorado no Cinema e que parece distante dos planos dos cineastas e do público. Com exceção talvez de David Lynch e seus devotos. Porém filmes como O Escafandro e a Borboleta faz-nos lembrar do grande potencial para representação de nossas fantasias que possui essa arte que ainda engatinha, com míseros 113 anos.

O filme do cineasta, e também pintor, Julian Schnabel conta a fascinante história de Jean-Dominique Bauby. Editor da revista "Elle" francesa que sofreu um derrame deixando todo o seu corpo paralisado. Exceto seu olho esquerdo. Em existência tão enclausurada, que sentido de vida pode alentar tamanha angústia? Jean-Do, como é chamado, se refugiará fundamentalmente em duas ferramentas: A memória e a imaginação. Além disso, se predispõe a escrever um livro sobre sua nova experiência de trancafiado em si mesmo, somente com o piscar de seu olho remanescente.

Os momentos em que embarcamos na imaginação e memória do protagonista são os melhores do filme. São nessas cenas, que nos fazem literalmente “entrar” em Jean-Do, que Schnabel explora com maestria essa certa vocação do Cinema para adentrar na subjetividade e fantasias de seus personagens. Como disse o crítico Daniel Piza, e eu concordo, o filme vai além e é melhor que o próprio livro que deu base ao filme.

A criatividade, a plasticidade das imagens. Tudo coopera para uma experiência de Cinema e de vida de grande intensidade. O Escafandro e a Borboleta nos reconcilia com a grande arte, lembrando a cada plano as imensas possibilidades da linguagem cinematográfica. Tema e forma numa relação simbiôntica e sofisticada, mas nem por isso distante do espectador, pelo contrário.

Lendo a resenha do filme, simplesmente, pode-se ter a errônea impressão de uma obra, digamos, “depressiva”. Um novo Menina de Ouro, por assim dizer. Mas não se engane. O Escafandro e a Borboleta é um recado para a reconstrução e celebração da família, dos amigos, do amor. Das borboletas da vida. Um filmaço. Junto com I´m not there, um dos melhores do ano.

11 de jul. de 2008

Recesso


Meus caros amigos,

Julho será um mês de sol, praia e ócio produtivo.

Voltamos em Agosto.

grande abraço.

Josafá

Ps: Só não deixem de ver "O Escafandro e a Borboleta". É maravilhoso!

30 de jun. de 2008

Cinturão Vermelho

Até parece que estou de mau humor. Há tempos que não escrevo uma crítica positiva. Mas a culpa é das estréias e não do meu temperamento, garanto.

David Mamet é um relevante dramaturgo norte-americano que às vezes se aventura na direção cinematográfica. E traz em seu novo filme a história de um herói contemporâneo. Um professor de Jiu-Jitsu que deve manter seus princípios num mundo corrupto e corruptor.

Ética é mesmo um valor em baixa nos costumes, por isso é até saudável ver um artista preocupado em pensar sobre o assunto. Mamet é um praticante da luta marcial que dá pano de fundo ao filme. Ou seja, fala do assunto com conhecimento de causa. Mas o problema do cineasta, e de seu Cinturão Vermelho, é que ele leva muito a sério o que aprendeu na academia. A, digamos, “filosofia” do Jiu-Jitsu que rege o comportamento do protagonista é tão rasa quanto a presente naquela outra série sobre artes marciais, Karate Kid.

E, como se não bastasse essa tábula rasa ideológica, Cinturão Vermelho possui o mesmo paradoxo que havia nos filmes do Daniel San, Sr. Miyagi e companhia: Durante todo o filme o herói diz veementemente “não” à violência, só que no final da trama não resta outra alternativa ao indivíduo senão entrar na pancadaria. Satisfazendo assim o clímax do filme e a catarse da platéia. Meu caro Mamet, me engana que eu gosto...

Ah, quanto ao desempenho dos brasileiros Alice Braga e Rodrigo Santoro. A sobrinha da Sônia continua uma graça e muito talentosa. O galã melhorou seu inglês e convence bem como um dos vilões. Em breve os dois devem aparecer em outras produções gringas. Pois é, meus amigos. Globalização.

17 de jun. de 2008

Fim dos Tempos

M. Night Shyamalan, uma das mentes mais originais do cinema norte-americano, pode ter afundado para sempre sua carreira. O dano pode ser irreparável. Fim dos Tempos é um grande equívoco dentro de uma filmografia mais que respeitável. A pior obra do diretor.

Desde o fracasso de seu último filme, A Dama da Água, a expectativa e a necessidade de um outro sucesso nas bilheterias se fazia imperativo para Shyamalan. Mas duvido que seu filme faça boa carreira nos cinemas. A idéia de Fim dos Tempos é até engenhosa: Uma substância tóxica surge não se sabe de onde, e impede que as defesas naturais do ser humano atuem. As pessoas começam então a cometer suicídios em massa.

Os primeiros cinco minutos são eletrizantes. O diretor de origem indiana é um discípulo de Hitchcock e filma muito bem, sabe criar tensão com sua câmera. O que atrapalha o restante dos noventa minutos de filme é que Shyamalan, além de ser influenciado pelo mestre do suspense, também é um grande tiete do cinema de Steven Spielberg e acaba adotando para si as mais duvidosas qualidades dos filmes do diretor de ET: Sentimentalismo barato, excesso de simplificações e o anseio em colocar no altar os valores da família.


Desde meados dos anos setenta, o cinema catástrofe tornou-se um gênero constante em Hollywood. Após o 11 de setembro, junto com os alertas quanto ao aquecimento do planeta, filmes do gênero voltaram a pipocar aos montes. Shyamalan com este filme se junta a essa trupe do ecologicamente correto e de crítica à paranóia americana, mas sem eficácia alguma.

O diretor costuma utilizar metáforas em suas obras para expor sua autoralidade, seu ponto de vista. Mas em Fim dos Tempos tudo é muito óbvio, raso demais. O que falta de complexidade sobra em concessões para o grande público que busca ir ao cinema para alienar seus neurônios. Algumas cenas lembram o pior do filme B e de horror. Não dá para levar a sério. Parece que o homem desistiu de ser o cineasta instigante que era.

Um filme pretensioso (no mal sentido de termo), terrivelmente interpretado (Nem Mark Wahlberg se salva) e quase grotesco em algumas cenas de suicídio. Incerto é o destino de M. Night Shyamalan na cova dos leões da indústria de Hollywood. Espero que não, mas talvez esteja próximo o fim de seu tempo...

8 de jun. de 2008

Um Amor para Toda a Vida

Muito temeroso, fui dar uma chance para o novo filme do ator e diretor britânico Richard Attenborough. Ele é o mesmo diretor de Gandhi, Um Grito de Liberdade e Chaplin. Filmes medianos, não gosto particularmente de nenhum deles. Todos exemplos daquelas biografias padronizadas que Hollywood adora fazer.

Bem, depois de quinze minutos de filme o temor inicial se transformou em um remorso doloroso. Êta, filme ruim! Attenborough costuma exagerar no sentimentalismo, mas neste Um Amor para Toda a Vida ele passou da medida do quanto de melação, frases feitas e música adocicada um espectador pode agüentar numa sessão de cinema. Nem mesmo os veteranos Christopher Plummer e Shirley Maclaine ajudam o filme a não naufragar por completo.

Há muitos filmes em Um Amor para Toda a Vida, pelo menos uns três diferentes. Muitos temas que esse diretor já octogenário - Em agosto ele completa 85 – busca desenvolver sem alcançar nem mesmo a mediocridade. Pelo seu próprio bem, leitor, passe longe deste novelão. Economize seu salário. Nem na tela pequena da tv um horror desses deve se sustentar.

3 de jun. de 2008

O Melhor Amigo da Noiva


A comédia romântica é hoje um dos gêneros mais consolidados do cinema norte-americano. A cada fim de semana um novo exemplar chega aos cinemas. E isso vem de longe. Em 1935 Frank Capra vencia os Oscars de melhor filme e direção com Aconteceu naquela noite, um exemplo quase paradigmático do tipo de comédia que se faz até a atualidade.

Gosto demais de acompanhar esses filmes, um pouco por falarem de amor, relacionamentos e ter, em 99% dos casos, um inevitável final feliz. Vejo por distração, às vezes por puro escapismo mesmo. Mas o que não impede de aqui e ali encontrar exemplos não só de simples diversão, mas filmes que possuem talento, inteligência e assim se diferenciam do mais do mesmo.

O Melhor Amigo da Noiva é uma surpresa e tanto nesse sentido. Histórias como a deste filme são contadas o tempo todo, mas sua graça, junto com o carisma de seus atores pode oferecer ao espectador uma experiência encantadora e muito engraçada. Cinema pra mim é um só. Não existe em minha concepção algo como “cinema de arte”. Há vida inteligente em Hollywood e eu não sou o primeiro a dizer isso.

Os “produtos” cinematográficos claro que existem, porém em meio a um oceano de mediocridade se pode enxergar exemplos diferenciados como este O Melhor Amigo da Noiva. Vale a pena passar por cima do preconceito e dar uma chance a um filme previsível, mas rico em observações humanas.

28 de mai. de 2008

Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal


O quarto filme do herói arqueólogo é frustrante por uma razão principal: Spielberg há alguns anos já virou um adulto. Não é mais o jovem cineasta que concretizava no Cinema suas fantasias com tubarões, extraterrestres e heróis à moda antiga.

No começo de sua carreira, os críticos até o acusavam de ter um certo complexo de Peter Pan. Bem, se isso é verdade, esse tal complexo o ajudou a realizar filmes de primeira qualidade para o grande público, inclusive os três primeiros Indiana Jones.

Mas agora, quase vinte anos após a realização de Indiana Jones e a Última Cruzada, Steven Spielberg não pode voltar no tempo e ser novamente o cineasta que era, com sua imaturidade, frescor e outros atributos que o favoreceriam para acertar a mão neste seu último filme.

Esse amadurecimento talvez não ajude o diretor na realização desses filmes blockbusters, mas com certeza colaborou para a feitura de obras mais sólidas como A Lista de Schindler, O Resgate do Soldado Ryan e, principalmente, Munique, disparado o melhor filme de sua carreira.

O novo Indiana Jones só não é um desastre completo por causa de seus personagens cativantes e a performance de Harrison Ford. Como ocorreu com a nova trilogia Star Wars, Spielberg, George Lucas e companhia exageram nos efeitos computadorizados e deixam para segundo plano o desenvolvimento de uma trama mais amarrada e envolvente.

Seria exagero, creio, chamar Steven Spielberg de “autor”. Mesmo que seja possível observar temas recorrentes em seus filmes como a família, a questão do outro, etc. Porém, uma coisa é certa, mesmo ao fazer um filme de aventuras despretensioso, o cineasta deve buscar fazer o filme que pessoalmente lhe agrada, e nunca o filme que ele imagina que o público gostaria de ver na tela...

Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida é ainda o melhor filme de todos, e um dos motivos é que Spielberg fez esse filmaço muito para satisfazer a si próprio, enquanto que esse último filme, disse ele em entrevistas, fez para os fãs. Estou generalizando, eu sei, mas acho essa declaração pode ser outra pista para solucionar o porquê das duas horas de pura decepção.

6 de mai. de 2008

O Sonho de Cassandra (2)


Há um fator novo e digno de nota no cinema de Woody Allen, especificamente em seu último filme, que é o uso de uma trilha sonora original. Quem acompanha os filmes do diretor sabe que o melhor do Jazz norte-americano acompanha os enredos de seus filmes como também a cidade de Nova Iorque se tornou uma de suas marcas registradas no Cinema. Temos então em O Sonho de Cassandra algo novo a ressaltar, um compositor especialmente convidado para compor a trilha do filme, no caso o músico norte-americano Philip Glass.

Pessoalmente não sou um grande entusiasta das partituras de Glass para o Cinema. Acho suas músicas repetitivas, plágio de si mesmas, por mais que reconheça sua eficácia em filmes como As Horas e no documentário Sob a Névoa da Guerra. Em O Sonho de Cassandra, creio que a trilha funciona muito bem. É econômica, senão precisa para acentuar os momentos de tensão e suspense na trama.

Quando ressalto (no texto abaixo) que vejo em O Sonho de Cassandra um filme de alguém que domina a linguagem do Cinema é também considerando o bom uso da trilha sonora pelo cineasta. Vejo um amadurecimento nesse quesito no Cinema do diretor desde Match Point (2005), no qual a música operística tinha um papel fundamental como pano de fundo da aristocracia inglesa. No filme, trechos de obras de Verdi e Bizet são usados com mestria pelo diretor.

Em Scoop – O grande furo (2006), seu filme seguinte, também se passando em Londres, temos a música clássica novamente muito presente, só que agora na busca de um tom mais cômico, com Grieg e Tchaikovsky. Gosto então de pensar que o “sucesso” do uso da trilha orquestral (original) em O Sonho de Cassandra não é por acaso, mas comprova uma genuína preocupação do cineasta em explorar novos territórios quando se trata de música para seus filmes.

5 de mai. de 2008

O Sonho de Cassandra

Ir ao cinema para ver o novo filme de Woody Allen é como rever um velho amigo. Uma vez por ano esse nosso companheiro-cineasta reflete sobre temas que o perseguem e que já foram explorados anteriormente em sua vasta filmografia.

Diferente do que muitos críticos acreditam, O Sonho de Cassandra não é mera repetição, ou uma “sub-obra” na carreira de Allen. Mas sim, um novo degrau na investigação e enfrentamento de dilemas pessoais do cineasta como a Morte, a Ética e o mundo contemporâneo. Eis a trama: Dois irmãos precisam urgentemente de dinheiro e o método mais fácil de conseguir é matando o inimigo de um tio rico.

Em suas entrevistas, Woody Allen é o primeiro a admitir que não se acha um diretor apto para realizar filmes “políticos” ou de “crítica” a algum tema atual. Porém, tanto em seu penúltimo filme, Match Point (2005), como no que acaba de estrear, Allen prova ser um cineasta muito atento ao mundo globalizado em que vive e capaz de apontar suas contradições. Sob que Ética viver num mundo obcecado pelo dinheiro? Quais os limites que a sociedade têm ultrapassado em favor do sucesso nos negócios?

Essas são algumas das questões que permeiam O Sonho de Cassandra. Uma excepcional obra cinematográfica. De um diretor com extremo domínio da técnica e da linguagem do Cinema. A cena na qual o assassinato é posto em pauta na trama, e na vida dos irmãos, é simplesmente brilhante nesse sentido.

Como em Crimes e Pecados (1989) e em outros de seus filmes, temos o assassinato, a culpa, os dilemas de Raskólnikov que tanto fascinam o diretor nova-iorquino. O que faz, talvez, de O Sonho de Cassandra um filme tão forte é o ingrediente de tragédia que move a trama até o desenlace.

É fascinante acompanhar tão rica obra artística. Em Crimes e Pecados, o personagem (também assassino) de Mantin Landau conseguia empurrar sua culpa para debaixo do tapete, o que nos dava um nó interior em nossas convicções religiosas e dramatúrgicas. Em Match Point , por sua vez, o arrivista Cris, após o assassinato de sua amante inconveniente, parece ter perdido parte de sua humanidade num final amargo, dilacerante.

Agora, os irmãos Colin Farrel (excepcional) e Ewan Mcgregor pagam por seus crimes de maneira inevitável. Mais do que uma simples lição de moral como “o crime não compensa”, Woody Allen nos dá um testemunho lúcido e crítico sobre o estágio a que chegamos como civilização, na qual a busca pelo dinheiro destrói relações familiares das mais sinceras.

Um grande filme, com certeza. Que poderá entrar no grupo das obras-primas do diretor, junto com Manhattan (1979), A Outra(1988) e Crimes e Pecados (1989).

14 de abr. de 2008

Maré - Nossa História de Amor

É uma pena, mas o novo filme de Lúcia Murat me parece um equívoco colossal. Sou um sincero admirador de Quase dois Irmãos, seu filme anterior, que acho um dos melhores filmes brasileiros dede a Retomada. Mas seu musical na favela constrange.

Por mais que atualmente vejamos alguns exemplos de musicais nas telas, os filmes do gênero ainda são esporádicos e a qualidade dos mesmos muito duvidosa. Aqui nos trópicos, não se via a produção de um musical (creio eu) desde os tempos de Oscarito e Grande Otelo.

É, portanto, de uma ousadia tremenda almejar levar para o Cinema o canto e dança num enredo shakespeariano já manjado. No resultado final, nada se sustenta. Nem mesmo o texto, a escolha das canções ou dos atores, que podem saber rebolar muito bem, mas a falta de carisma do elenco é generalizada.

25 de mar. de 2008

2 dias em Paris


Fui ver 2 dias em Paris com boas expectativas. Julie Delpy é a atriz, roteirista e diretora dessa comédia romântica despretensiosa, e quem me conhece sabe bem que gosto enormemente da atriz no díptico Antes do Amanhecer e Antes do Pôr-do-Sol, de Richard Linklater.

Vi o filme com um amigo e a decepção foi a mesma. Julie faz a francesa que leva o namorado americano (Adam Goldberg) para conhecer seus pais na cidade-luz. O choque cultural do namorado com sua família (e Paris) é a linha-mestra do longa.

A idéia é convencional, mas não quer dizer que por isso a estréia na direção de Delpy esteja fadada ao fracasso. O problema é que ela se utiliza exaustivamente dos clichês e preconceitos mais comuns em relação aos franceses: Taxistas mal-educados, liberalidade sexual, etc. Tudo muito raso, repetitivo e, infelizmente, sem graça nenhuma.

Não sou o primeiro a dizer que fazer Comédia é algo muito mais complexo do que a feitura de um Drama. Delpy não acerta o tom de humor, por mais que seu parceiro de cena, Goldberg, tenha alguns bons momentos. Julie Delpy é realmente francesa e espanta esse seu olhar reducionista sobre sua terra natal. Filme de estreante. Mais sorte na próxima.

17 de mar. de 2008

Sicko - S.O.S. Saúde

Deve ter sido um baque bem grande para Michael Moore a vitória para um segundo mandato do presidente George Bush. Fahrenheit 11/09, filme anterior do diretor, nada mais era do que um grande longa panfletário anti-bush. Lembro que no dia seguinte à vitória do republicano, Moore, procurado pela imprensa, decidiu não se manifestar, tão abalado que estava.

Creio que aquela derrota política para o diretor pode também ter afetado seu cinema. Feito-o repensar a eficácia de seus filmes junto ao público médio americano, seu alvo principal. Pensei nisso enquanto via Sicko-S.O.S Saúde, seu novo documentário que estreou na última sexta, no qual investe contra o sistema de saúde americano.

Sicko-S.O.S Saúde é um bom filme, o menos manipulativo dos filmes de Moore, como também o menos jocoso e no qual a sua postura de show man aparece com mais retidão. Na primeira metade do filme a figura inconfundível do cineasta, como sua narração contundente, pouco aparece, deixando que as histórias das pessoas ludibriadas pelos planos de saúde falem por si. São justamente os melhores momentos do filme.

Os grandes pecados, porém, ainda não resolvidos por Moore são o seu sentimentalismo e patriotismo. Por não controlar muito bem a dosagem desses dois elementos, seu filme perde dosagem de sua força. A música melosa sobreposta aos depoimentos soa totalmente desnecessária. Já era tempo de Moore entender isso.

Já fui um crítico mais severo do cinema do diretor, hoje tento ser mais sereno. Michael Moore tem como principal inimigo o poder das corporações e investe na tentativa de desmascará-las ao grande público, o que acho honrável e necessário.

Esse tom mais ameno com que olho seus filmes também vem da consciência mais límpida de que Cinema é linguagem, um exercício de manipulação de imagens e idéias. O Cinema documentário, diferente do que muitas vezes imaginamos, não traz junto de si um atestado de verdade absoluta. Michael Moore se utiliza dessa linguagem como poucos para defender o que acredita. Seus filmes são “a verdade de Michael Moore”, uma opinião que podemos, ou não, acatar.

Bem, num momento histórico em que se impera a ditadura do politicamente correto e do vácuo ideológico, acho imprescindível que um cineasta faça um filme e tenha os colhões necessários para dizer “Eu acredito nisso ou naquilo”. Esse tipo de postura tem muito faltado a cineastas contemporâneos. Para citar um só exemplo: Carandiru de Hector Babenco. Um filme medíocre e sem coragem de assumir a que veio.

6 de mar. de 2008

Antes de Partir

Sou um amante do Cinema. Com uns nove anos, depois que vi O Garoto num especial da rede Globo, conheci a obra de arte de um humanista que se tornou, a partir dali, um dos meus diretores preferidos. Depois veio a admiração por cineatas como Bergman, Woody Allen e outros. Para mim, no universo da criação, o Cinema vem em primeiro lugar, logo seguido pelo teatro.

Gosto muito de acompanahar montagens dessa "arte do ator" . E pela possibilidade de ver ao vivo alguns atores fundamentais da nossa história, não perdi a oportunidade de ver no palco nomes como Paulo Autran, Othon Bastos, Glória Meneses e tantos mais. De maneira geral, porém, o talento desses gigantes dificilmente é acompanhado por uma dramaturgia do mesmo nível. Quando termina o espetáculo me acostumei a comentar algo como “o ator é fenomenal, mas o texto, a montagem...”.

Há duas semanas estreou Antes de Partir, filme de Rob Reiner com Jack Nicholson e Morgan Freeman. E como muitas das minhas experiências no teatro não espere uma grande obra, tenha somente certeza que acompanhará dois mestres na tela. Elogiar Nicholson é algo quase de praxe, mas sempre vi Freeman também como um dos excelentes intérpretes do Cinema contemporâneo. Acho que sua figura legitima e traz dignidade a muitos filmes às vezes nem tão bons como Robin Hood, Um sonho de liberdade ou Menina de Ouro (que eu acho um horror!).

Em Antes de Partir os dois veteranos são dois pacientes terminais que dividem o mesmo quarto de hospital. Após uma tomada de consciência quanto à finitude da vida, os dois cumprem uma lista daquilo que sonham fazer “antes de partir’...

Conhecendo Hollywood, não é necessário lembrar que os dois trocarão grandes lições de vida ao longo do filme. Ensinamentos da profundidade de um pires. Mas a previsibilidade não estraga alguns bons momentos entre os dois. Seja com o sarcasmo de Nicholson ou na nobreza de Freeman, Antes de Partir é uma “sessão da tarde” de (boa) qualidade.