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3 de ago. de 2009

Hitchcock e o cinema puro de Psicose

“Tratarei o público com choques benéficos. A civilização transformou-se em algo tão protetor que já não somos capazes de nos arrepiar de forma instintiva. A única forma, maneira, o único jeito de sair desse amortecimento - apatia - e restaurar o nosso equilíbrio moral é lançando mão de meios artificiais para trazer de volta o choque. E a melhor forma de se conseguir isso, me parece, é através do cinema.”


A. Hitchcock




Com um invejável domínio dos artifícios cinematográficos, o diretor inglês Alfred Hitchcock consolidou-se como especialista em um único gênero, o suspense. O crítico e professor Ismail Xavier escreve no prefácio do livro de entrevistas “Hitchcock/Truffault” que o diretor realizava “a orquestração do olhar capaz de capturar o espectador, [...] Medo e expectativa compõem o lastro dessa captura, qualquer que seja a opinião que se tenha sobre o valor de tal experiência e de sua filosofia”. Hoje ninguém tem a ousadia de negar a importância dos filmes do velho Alfred. Mas nem sempre foi assim. O prestígio do diretor e a consciência de sua inquestionável grandeza artística vieram aos poucos. Como também o reconhecimento de filmes seus como clássicos fundamentais da história do cinema.

Hitchcock era um cineasta popular, um showman sem medo de fazer papel de palhaço para fazer propaganda. Fotos com pássaros no charuto, se vestir de bebê em seu programa de televisão semanal, tudo valia para que seu carisma ajudasse na divulgação de sua persona e, consequentemente, de seus filmes. Tudo isso colaborou para que Hitch e sua obra não fossem levadas muitas a sério, nem pela intelectualidade da época, nem por Hollywood. Indicado ao Oscar muitas vezes, nas categorias de filme e direção, o cineasta nunca recebeu a cobiçada estatueta dourada. O prêmio só chegou em 1968 com um Oscar especial pelo conjunto da obra. Na noite da premiação, com o homem pelado e careca nas mãos, Hitchcock agradeceu com um lacônico e ressentido “thank you”. O mais curto agradecimento na história da Academia...

Foi só em meados dos nos 60 que o olhar sobre o cinema de Hitchcock tornou-se, aos poucos, mais respeitoso. Os jovens críticos da famigerada Cahiers du Cinéma cruzaram o Atlântico com sua política dos autores para resgatar os diretores americanos que mais admiravam, entre eles Nicholas Ray, Howard Hawks e Hitchcock. Diretores que os jovens críticos franceses consideravam ser mais que artesãos competentes. Eles foram atrás dos “verdadeiros artistas”, daqueles que possuíam um estilo cinematográfico pessoal ou investigavam temas que apareciam com recorrência em seus filmes. O crítico e depois cineasta François Truffault fazia parte dessa trupe de críticos amantes de A dama oculta (1938), Janela indiscreta (1954), etc.


Truffault foi talvez o principal responsável pela revisão crítica de seu admirado, graças às entrevistas cedidas por Hitchcock ao cineasta para a feitura de “Hitchcock/Truffault”, relançado aqui pela Companhia das Letras em ótima edição. O livro é uma das bíblias de qualquer cinéfilo, e com ele uma nova brisa foi soprada para os desqualificadores do mestre, cuja carreira encontrou seu ponto mais alto em Psicose (1960), que em minha forma de ver é sua principal obra. A que melhor expressa e exemplifica seu brilhantismo. Falando do filme com Truffault, comentou:

“A construção desse filme é muito interessante e é minha experiência mais apaixonante de jogo com o público. Com Psicose, fiz a direção dos espectadores, exatamente como se eu tocasse órgão”. P. 275.

Ouve-se muito por aí, com bons fundamentos, que Vertigo - Um corpo que cai (1958), e não Psicose, é seu melhor filme. Na opinião de seu biógrafo, Donald Spoto,Vertigo seria seu filme mais denso e pessoal, a expressão mais genuína de um Hitchcock cheio de neuroses, medos e obsessões.

O clássico com James Stewart e Kim Novak é realmente grande, maravilhoso. Mas é importante lembrar que em primeiro lugar Hitchcock buscou a comunicação com o público, assim como Fellini. Há no enredo de Vertigo, simplificando um pouco, dois filmes. Um que vai até a morte de Madeleine (Novak), e outro sobre a busca necrófila de Scottie (Stewart) para ressuscitar sua amada. Essa complexidade de roteiro não ajudou a fazer desse clássico um sucesso como o diretor esperava. Diferente de Psicose, um êxito de público retumbante. E isso vem de uma razão essencial: Psicose é o filme em que o estilo e apuro técnico visual de Hitchcock alcançaram a excelência. Aquele em que o cineasta provou sua habilidade em manipular o espectador como queria, fazê-lo tremer e suspirar no momento que desejava.

O assunto de um filme nunca interessou muito a Hitch. A trama era algo secundário. A preocupação com a forma - os enquadramentos, a montagem, onde usar a trilha sonora – era o que fazia seu coração bater mais depressa. E seu filme com Janet Leigh é emblemático nesse sentido. Diz ele novamente a Truffault:

“[...] o tema me importa pouco, os personagens me importam pouco, o que me importa é que a montagem dos fragmentos do filme, a fotografia, a trilha sonora e tudo que é puramente técnico conseguiram arrancar berros do público. [...] Não foi uma mensagem que intrigou o público. Não foi uma grande interpretação que transtornou o público. Não era um romance muito apreciado que cativou o público. O que emocionou o público foi o filme puro”. P. 287.




Psicose é “cinema puro”, expressão de Truffault. Porque as especificidades dessa arte são usadas com maestria. Porque os movimentos de câmera são tão essenciais quanto a construção dramática de Marion Crane. Tudo com o intuito de cativar o espectador, manipulá-lo sem pudor. E para isso, no caso do filme 1960, a sabedoria no uso da trilha musical de Bernard Herrmann é essencial, senão imprescindível.

O começo dessa parceria entre Hitchcock e Herrmann foi em 1955, na comédia de humor negro O terceiro tiro, e perdurou por mais de dez anos. A trilha de Psicose serve ao filme, fora dele a audição da trilha pouco se sustenta. Violinos, violoncelos e baixos dão o clima de cada sequência com linhas musicais pouco melodiosas. Em “A construção do suspense: a música de Bernard Hermann em filmes de Alfred Hitchcock” (Ieditora), a pesquisadora Rosinha Brener diz algo interessante:

“A música de Psicose é o que se pode chamar de uma das mais perfeitas para um filme de suspense. Com efeito: o que seria da cena do chuveiro, se não fossem os glissandos arrepiantes? Esta cena explica o que a música pode injetar em uma imagem. Ao que parece, o interesse de Hitchcock na música está na força que ela pode oferecer para intensificar o suspense”. P.24.

Atualmente há um certo vício em muitos dos textos e resenhas sobre cinema. O enredo e o tema do filme costumam pautar as análises. Como diz Woody Allen, crítica é a racionalização da subjetividade, então cada um de nós faz o recorte que bem entende, mas sinto falta de críticas que também lembrem de “como” o cineasta conta suas histórias, e não somente sobre “o quê” discorre seu filme. Observar as especificidades cinematográficas de Psicose, e não somente fazer uma análise psicanalítica ou do ponto de vista da interpretação de Anthony Perkins (Norman Bates) por exemplo, me parece fundamental. E que no final valoriza devidamente as contribuições de Hitchcock para a evolução do cinema moderno. Neste quesito, Hitch é tão importante para a história do cinema quanto Orson Welles... O que não é pouco.

Com Psicose, esse gourmet fascinado por loiras alcançou o virtuosismo de sua mise-en-scène, de seu estilo e de sua filosofia sobre o que é o Cinema. Enigmática pergunta que nem o ensaísta Jean-Claude Bernadet se arrisca a responder em seu pequeno livro “O que é Cinema”, editado pela Brasiliense. Psicose é teoria e prática, forma e conteúdo casando-se harmonicamente.


3 comentários:

Raphael Lima disse...

gostei da idéia de termos que criar o nosso arrepio na Arte...
sempre quando leio o teu trampo fico querendo gostar mais de cinema.
brigado querido

Josa disse...

tenho aqui uma videoteca q é sua também...

abraços

Raphael Lima disse...

opa to ligado! o que podes me emprestar deste mestre? eu vou assistir com muito cuidado, inclusive aqueles últimos dois filmes que tu me emprestou fizeram um encantamento em-mim... grato e até breve!