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25 de set. de 2008

Ensaio sobre a cegueira

O espírito do livro está no filme. Como deve ser as boas adaptações de livros para as telas, Fernando Meirelles reinventa a obra para manter-se fiel ao autor. Como no livro de Saramago, temos uma fábula contemporânea sobre nossa incapacidade de ver.

A história é tênue. Sem motivo, repentinamente, o mundo está cego. Apenas a personagem de Julianne Moore mantém sua visão. Ela não possui nome ou passado, como todas as demais figuras principais. Um casal, um senhor negro, uma criança...

Meirelles realizou não só um recontar do enredo, mas buscou nas especificidades do cinema realizar uma obra de força em si. Som, música, edição. Artifícios de linguagem que o diretor domina como poucos. A fotografia de César Charlone, que desconstrói a imagem para melhor captar a impressão de perda da visão e a cegueira branca, é corajosa e de personalidade.

Há, sim, problemas de roteiro. Ensaio... é um tanto desequilibrado, principalmente na primeira meia hora de projeção. Nesse início, falta aos personagens despertar a empatia indispensável para nos envolvermos com o que se passa. Mas logo o envolvimento ocorre, junto com a força que o filme possui.

Quase no final do filme, há uma cena emblemática: na cidade já imunda e decadente, a chuva cai. Homens e mulheres se deixam encharcar em busca não só de limpeza, mas de redenção. Em tempos de brutalidade latente, a civilização clama por purificação.

Como no livro de Saramago, deve-se perder a visão para voltar a enxergar. Diz a mulher do médico (persongem de Julianne) para seu esposo, no final do livro: “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vem, Cegos que, vendo não vêem”.

9 de set. de 2008

Linha de Passe

Uma família da periferia de São Paulo. Quatro irmãos de pais diferentes buscam melhores perspectivas. A mãe, solteira, doméstica e grávida. Não há um pai que complete esta família no novo filme de Walter Salles, Linha de Passe, co-dirigido por Daniela Thomas. A orfandade paterna e suas complicações continuam perseguindo o cinema dos dois diretores. Terra Estrangeira, Central do Brasil, Abril Despedaçado. Nesses filmes a figura paterna é ausente, motivo de busca ou centro dos conflitos do protagonista. Em Linha de Passe, cada um dos irmãos se desdobra de uma forma para lidar com ausência familiar tão fundamental.

Dario (Vinicius de Oliveira), sonha ser jogador de futebol. Dinho (José Geraldo Rodrigues), evangélico, é frentista num posto de gasolina; Dênis (João Baldasserini), motoboy, não vê futuro em si próprio; e Reginaldo (Kaique Jesus Santos), o menor, busca o pai que desconhece. Este caçula empreende a mesma jornada de Josué em Central do Brasil. E assim como em Cidade dos Homens, de Paulo Morelli, esse pai inexistente é metáfora de um País órfão de instituições capazes de acalentar suas contradições.

Walter Salles é cineasta herdeiro do Cinema Novo dos anos 60. Possui um olhar para o Brasil e seus marginalizados. Porém sem o esquematismo que marcou produções de Glauber Rocha, Cacá Diegues e outros. Salles dá a seus personagens complexidade, nuanças. Temas como religião e futebol não são tratados na tela como alienantes. Entender, e não esteriotipar, é o foco do diretor.

Na cartilha marxista de Os Fuzis (1963), de Ruy Guerra, há uma cena inicial emblemática: Uma nordestina idosa diz em depoimento que ficou cega no dia em que morreu Getúlio Vargas. Ou seja, a partir do momento que nosso maior pai político faleceu perdemos a visão, o rumo de nação. Nossa orfandade política, comprova Linha de Passe, permanece. Um filme maduro, belo e intenso.
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crítica de cinema publicada na revista Pipoca Moderna - Ed. 41.

6 de set. de 2008

Nome Próprio (III)

Em Nome Próprio forma e conteúdo andam, na maior parte do tempo, casadas de maneira muito interessante. Sua estética é autoral, feliz, e pouco pedante. Não posso admitir que alguém me diga que talvez Nome Próprio tenha sido realizado para satisfazer o umbigo de Salles. O filme está aberto a se comunicar com aqueles que querem ouvir sua canção. Camila é uma incógnita para o diretor e ele compartilha seus enigmas conosco. Difícil não ver altruísmo nisso.

Assim como em Como nascem os anjos e Nunca fomos tão felizes, filmes anteriores do diretor, Nome Próprio passa-se preponderantemente dentro de uma mesma locação: Um apartamento. Se Camila já cria barreiras para si própria, a claustrofobia de quatro paredes nos leva a um desconforto que é positivo para as intenções do filme. A longa duração de algumas cenas pode mesmo ser interpretado como um “excesso” de Salles, mas esse mesmo excesso colabora para compartilharmos a dor que transborda em Camila.

Algo parecido pode ser dito sobre o teor das interpretações do filme. Leandra Leal me parece realmente irretocável, mas tem sido comum ouvirmos comentários negativos em relação às interpretações do elenco masculino. Elas seriam “over”, exageradas. Penso diferente. Nome Próprio, através principalmente da seqüência final, dá margem para pensarmos que o que vemos no filme nada mais é do que a visão de mundo de Camila. A subjetividade da personagem é a essência do filme!

Não podemos duvidar da inteligência do diretor em querer transformar em proposital um registro de interpretação cheio de singularidade. A chave de interpretação do filme é algo dos mais interessantes na recente cinematografia nacional. Os personagens masculinos são todos um pouco “personagens deles próprios”. Playboys imaturos cheios de grosseria e vaidade. Ora, essas são as máscaras que Camila vê em todos os garotos que conhece. Ficção e “realidade” convergem na mente da protagonista, ela relê o mundo a sua volta.

Camila segue bem as palavras do poeta Ferreira Gullar que não se cansa de dizer: A vida é uma invenção, você escolhe se quer fazer dela uma coisa alegre ou se prefere que seja uma droga. Daí não dá pra deixar de emendar com a já mil vezes repetida frase de Cecília Meireles: A vida só é possível se reinventada. Porque não existe a vida, existe o caos, que você monta como achar melhor...

Há algo do romance Reparação, de Ian McEwan, em Nome Próprio. Algo da jovem Briony Talles em Camila. Quais são os prejuízos do excesso de imaginação? E quanto a mesma imaginação e arte podem auxiliar-nos na “reparação” e reconstrução do mundo, de nós mesmos? Qual a função da arte escrita para Camila se reerguer, se reinventar? Para ela se encontrar como Mulher? ... “O que querem, afinal, as Mulheres?” Freud se perguntava...

2 de set. de 2008

Nome Próprio (II)

1968-2008. 40 anos do ano mítico de mudança dos costumes, da emancipação da mulher etc. Penso, porém, que mesmo com as muitas transformações e conquistas dos anos 60, minha geração não alcançou o equilíbrio entre a “facilidade” da atividade sexual e a plenitude amorosa e afetiva. Sexo não é um problema para Camila/Leal. Liberdade sexual não é mais a grande questão, como também não é uma dificuldade para as rasas consumistas da série Sex and the City. O que falta a Camila, e a toda a atual geração de jovens, é saber lidar com suas relações. Ela carece de educação amorosa, não sexual...

Camila é autodestrutiva. Quando encontra um bom parceiro, logo em seguida compromete sua felicidade com alguma postura que escapa nossa compreensão e destrói suas possibilidades de se encontrar existencialmente. Esse paradoxo se explica em parte pela incapacidade dos homens a sua volta de serem um refúgio emocional satisfatório. O mundo masculino expressado na tela é interesseiro, mesquinho e insensível. O único porto seguro que Camila encontra é na figura de uma outra mulher e na escrita em seu blog. Há um, digamos, "machismo"- na falta de um melhor termo - que ronda o universo da protagonista, que a asfixia.

Na busca de Camila por uma ordem ao seu caos interno, há o impulso pela escrita. Ela possui um blog onde, sem pudor, expõe sua intimidade para quem interessar. Não acredito que esse impulso seja, essencialmente, um movimento de auto-exposição de sua privacidade. Também é isso, claro, mas Murilo Salles está mais preocupado em refletir criticamente sobre a tecnologia onipresente da Internet. Como disse, Camila tem dificuldades em se relacionar com o mundo humano que a cerca e é sintomático que seu maior porto de consolo não esteja na figura de outro ser humano, mas em uma máquina impessoal.

Diferente do que foi vendido na época de seu desenvolvimento, aos olhos do diretor a Internet não tem sido um veículo de aproximação humana. Muitos dos visitantes do site de Camila fetichizam e desprezam a pessoa e autora do blog. O computador da personagem não a conecta com ninguém, somente com ela mesma. Há excessos em Nome Próprio, mas nele também há um rigor nos temas que o diretor quer pôr em pauta. Por quatro ou cinco vezes, ouvimos o tom de discagem para que Camila se ligue ao universo da web. Só que não há redenção após a conexão, somente a mesma solidão e vazio.

26 de ago. de 2008

Nome Próprio (I)

Há uma anedota que se conta entre os psicanalistas. Sigmund Freud, após décadas dedicadas ao estudo de nosso inconsciente, morreu sem responder a pergunta que mais o angustiava: “O que querem, afinal, as Mulheres?”. A literatura nos dá algumas dicas sobre o assunto nas obras de Virgínia Wolf, Clarisse Lispector. No Cinema, Bergman e Woody Allen nos deram mais algumas sugestões para, atrevidamente, ousarmos tatear tamanho mistério que é o mundo feminino.

Nome Próprio, de Murilo Salles, tenta cavar um pouco mais fundo na busca dessa “tristeza de se saber Mulher” que disse Vinícius de Moraes em seu Samba da Benção. Nome Próprio é um filme que eu definiria como corajoso. Valente porque arrisca uma reflexão sobre a juventude. Sobre uma geração que não é a do diretor. A geração jovem atual, do vazio ideológico e utópico.

Neste ano de 2008, talvez somente Batman-O Cavaleiro das Trevas, que eu me lembre, tenha provocado mais minha geração com suas críticas à nossa Democracia fajuta e ao Estado de Ordem em que (não) vivemos. Nome Próprio também provoca, só que num âmbito mais afetivo, menos político. Um filme de uma força que um olhar apressado pode desaperceber.

Em sua primeira cena, a personagem principal Camila/Leandra Leal está totalmente desnuda. Salles, na apresentação de sua anti-heroína, prova já seu objetivo maior: Dissecar essa blogueira auto–destrutiva, cheia de angústia em frente de seu computador inanimado. Temos, então, um filme de estudo de personagem. Feminino, além de tudo.

Com tudo isso, não quero dizer que Nome Próprio seja um grande filme. Não é. O filme chega quase lá. Não chega a um estatuto de Gritos e Sussurros, por assim dizer. Mesmo tendo uma câmera vigorosa, Nome Próprio peca pelo excesso, pela falta de objetividade. Mas não significa que não valha a pena dar um olhar mais apurado em seu potencial, que existe, sim. (continua)...

6 de ago. de 2008

O Escafandro e a Borboleta (II)

Desde que li o livro em que o filme se baseia, queria muito compartilhar alguns trechos que de alguma forma me tocaram. Ia fazer isso logo após o post sobre o filme, só que aí veio o novo Cavaleiro das Trevas, com seu Coringa anárquico, e mudou a ordem das coisas, meu plano inicial...

Mas, agora sim, e com calma, selecionei algumas linhas do canto de vida de Jean-Dominique Bauby. Se você ainda não viu nos cinemas esta maravilhosa adaptação, presenteie-se com essa experiência! E leia também o livro, recém reeditado pela Martins Fontes. Um vôo “comovente, de um escritor extraordinariamente talentoso, conta como transformar dor em criatividade, desespero humano em milagre literário”, nas palavras de Elie Wiesel na orelha da obra.

“O escafandro já não oprime tanto, e o espírito pode vaguear como borboleta. Há tanta coisa para fazer. Pode-se voar pelo espaço ou pelo tempo, partir para a Terra do Fogo ou para a corte do rei Midas”. (pág. 09).

“Por ora, eu seria o mais feliz dos homens se conseguisse engolir convenientemente o excesso de saliva que me invade a boca sem parar”. (pág.16).

“Foi assim que deparei com o farol numa das primeiras vezes em que empurravam minha cadeira de rodas, logo depois que saí das brumas do coma. [...] Imediatamente me pus sob a proteção desse símbolo fraterno que vela pelos marinheiros e pelos doentes, estes náufragos da solidão”. (pág. 33/34).

“Quanto ao prazer, apelo para a lembrança viva de sabores e odores, inesgotável reservatório de sensações. Não existia a arte de bem aproveitar os restos? Eu cultivo a de cozinhar lembranças em fogo lento”. (pág. 40).

“Afasto-me. Lenta mas decididamente. Assim como o marinheiro vê desaparecer a costa de onde zarpou para a travessia, eu sinto meu passado esvanecer-se. Minha antiga vida arde ainda em mim, mas vai-se reduzindo cada vez mais às cinzas das lembranças”. (pág. 83).

3 de ago. de 2008

Era uma vez...


Se dissesse que o filme é bom estaria sendo complacente com um diretor que ainda tem meu respeito. Não é um filme memorável, longe disso. Mas isso não impede de lembrar algumas qualidades que possui Era uma vez..., um romance à Romeu e Julieta entre um jovem do morro e uma garota da elite do Rio de Janeiro.

Sempre tento “defender” 2 filhos de Francisco, o primeiro filme do diretor. Acho que lá se atestava o talento de Breno Silveira para esmiuçar relações familiares, aparentemente um dos seus temas preferidos em carreira que ainda floresce. A história de luta e sucesso dos insossos Zezé de Camargo e Luciano mostrava habilidade narrativa e sensibilidade na direção de atores. Algo raríssimo no Cinema nacional de antes e de sempre.

As qualidades apresentadas em seu primeiro filme acabam sendo as principais virtudes do filme que estreou semana passada. Um roteiro bem amarrado (mesmo que previsível), personagens críveis e interpretações convincentes. Aliás, o que Era uma vez... talvez possua de melhor é mesmo seu protagonista Thiago Martins, garoto de carisma inegável. Os momentos de seu personagem com o irmão (Rocco Pitanga) são luminosos. Pena que o filme não se sustente tão bem em outros momentos.

A vontade de ser didático, o que acarreta um certo esquematismo, é o maior problema do filme. A ingenuidade da parte final me parece quase imperdoável. O Cinema não precisa apontar soluções para problema algum, mas a questão da violência no Rio e no Brasil é muito mais complicada do que sugere a simplicidade do desfecho.

24 de jul. de 2008

O Cavaleiro das Trevas (IV)

James Gordon – Em Batman Begins ele era aquele que punha a mão no fogo pelo herói. Dava-lhe sua confiança na luta contra o crime. No primeiro filme, o tenente Gordon era um idealista solitário, carente de companhia ética. Faltava-lhe uma força-tarefa contra a corrupção, que só aparece com a chegada do homem-morcego a Gotham.

Em O Cavaleiro das Trevas temos um homem mais pragmático. Calejado, talvez. Parece que Gordon tomou o mesmo banho de realidade que Harvey Dent, só que de maneira bem menos trágica. Em seu próprio departamento, Gordon sabe que nem todos os seus subalternos são pilares de moralidade, o que ameaçará a segurança de sua própria família nos momentos finais do filme. Da mesma forma que Batman, Gordon não se incomoda em usar meios pouco ortodoxos para conseguir o que quer. Como se não fosse possível lutar por justiça sem colocar as mãos na lama, ou governar sem ter que subornar parlamentares em troca de apoio.

Alfred – Foi só vendo o filme pela terceira vez que me ficou claro a importância deste coadjuvante encantador. Ele é a figura paterna, a voz da sabedoria. Um exemplo de fidelidade, cumplicidade e compaixão para com seu empregador. Junto com o personagem de Morgan Freeman, Lucius Fox, Alfred é a luz humana que impede O Cavaleiro das Trevas de ser uma obra exageradamente pessimista.

A atuação de Michael Caine é tocante, mínima, mas precisa. Ator e personagem se confundem na dignidade exigida pelo papel. Novamente como Lucius, Alfred é alguém que está acima do bem e do mal. Um mordomo que pode se dar ao luxo de omitir a verdade a Bruce Wayne, justamente pensando na felicidade dele.

Lucius Fox - Como o mordomo Alfred, o personagem de Morgan Freeman possui o mais humano de todos os dons: o senso de humor. Diante de tanta tensão e violência em O Cavaleiro das Trevas, Lucius nos aliviará com sua sagacidade e mansidão.

Ao ver o novo dispositivo criado por Batman para espionar todos os cidadãos de Gothan à 1984, Lucius diz: “É muito poder para um homem só”. No que Batman responde: “É por isso que só você pode controlá-lo”. Impossível pensar em elogio maior à nobreza deste parceiro que equilibra as decisões do protagonista. Lucius Fox é a consciência perdida naqueles que democraticamente votaram e decidiram pela explosão do barco ao lado, cheio de criminosos.

Rachel Dawes
– Como era o “leitor” em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o único senão do filme é ninguém menos que Maggie Gyllenhaal, a atriz na pele da advogada Rachel Dawes. Canastrona de primeira grandeza, Gyllenhaal causa uma verdadeira repulsa quando aparece na tela. Nada contra a personagem em si, mas a atriz não é bonita, não tem carisma ou simpatia. Um horror! Sua maior qualidade é que lá pelas tantas ela morre junto com a personagem...

23 de jul. de 2008

O Cavaleiro das Trevas (III)


Harvey Dent/Duas Caras – Em O Médico e o Monstro, de Robert L. Stevenson, há um capítulo final com o relato do próprio Dr. Jekyll com conclusões sobre as experiências que o transformavam no inescrupuloso Mr. Hyde. Diz ele em uma parte do texto, cheio de angústia:

"A cada dia, e de ambos os lados da minha inteligência – o moral e o intelectual – eu chegava cada vez mais próximo daquela verdade cuja descoberta parcial tinha-me condenado a um terrível fim: a de que o homem não é apenas um, mas sim dois. Eu digo dois porque meu conhecimento não vai além desse ponto. (...)... e eu arrisco a suposição de que, ao final, o homem será firmemente conhecido com um mero estado multifacetado, incongruente...” (L± pág. 96.)

Dentro da subversão que faz Christopher Nolan das costumeiras adaptações dos quadrinhos para as telas, está a representação multifacetária de seus personagens. E, talvez, em Harvey Dent tenhamos o melhor exemplo dessa ambigüidade que permeia o filme. Nem preto nem branco. Em O Cavaleiro das Trevas, temos um mundo acinzentado. Sem vilões absolutos ou heróis incorruptíveis. Se antes tínhamos a destreza moral sem nuanças dos super-heróis, temos agora não somente as duas faces de uma ordem moral, mas sim, nossos muitos rostos e máscaras. Por mais que o personagem de Duas Caras possua uma iconografia uma tanto esquemática, de dois rostos, um natural e outro desfigurado.

Harvey Dent possui uma dimensão trágica. Até quase o final do filme, é o mais íntegro de todos os personagens. É o Cavaleiro Branco sem máscara que Gotham necessita, em detrimento do justiceiro mascarado. Mas é também aquele que mais perde no jogo de dados do acaso. Ele perde a mulher que ama, a causa que professa e mais que tudo, a esperança de que um comportamento ético, decente e moral pudesse ser a melhor arma de resistência contra um mundo corrupto. Suas frustrações são com a impossibilidade de se fazer justiça com as mãos limpas, da decepção diante de um Estado de Direito incompetente e consigo mesmo. Coringa o mostra, naquela grande cena entre os dois no hospital, que nosso mundo é injusto, de que nem sempre boas intenções geram o tão esperado final feliz com direito a casamento, filhos e netos...

Transformando-se de Harvey Dent para Duas Caras, o advogado paladino à Eliot Ness torna-se a maior vitória do Coringa. A prova da tese do palhaço de que basta um “empurrãozinho” para virarmos bárbaros e nossos maiores inimigos. Coringa pode ter sido preso, não ter conseguido “sucesso” em seu “experimento social” nos barcos que não se destroem, mas sua última carta na manga é a conversão do criminalista em criminoso.

Dentro de uma concepção de herói mais tradicional, ou seja, aquele que se sacrifica por outro(s), Harvey Dent é o mais próximo do heroísmo em todo filme. Seu altruísmo cheio de benevolência aparece no mínimo três vezes. Primeiramente em sua cruzada a favor de Gotham, lutando pela justiça de maneira icônica. Depois, assume ser o próprio Batman, tomando para si os pecados do justiceiro mascarado e fazendo a vontade da maioria de Gothan. E por último, e talvez o mais doloroso, há o sacrifício que se dá a favor de Rachel Dawes. Nosso caro Harvey estava disposto a dar sua vida, se isso resultasse na sobrevivência da mulher que amava. É doloroso acompanhar tamanha jornada que acaba em ceticismo e desespero.

Harvey Dent/Duas Caras é a “chave” do filme. O personagem que ilustra melhor os objetivos do Coringa. Nele está a crueza do filme, pois exemplifica o beco sem saída a que chegamos. Che Guevara disse certa vez que não se faz revolução antes dos trinta anos. Será que a passagem do tempo nos torna mais embrutecidos, desesperançados? É ingênuo tomarmos como exemplo a postura inicial de Harvey Dent, já que o destino inevitável está na desilusão e no vácuo ideológico? Acho que poucas vezes um personagem expressou tão bem o sentimento que ronda o mundo pós-queda do muro de Berlim, pós-renúncia de Fidel. Um mundo sem utopias. Em que a linha entre a corrupção e o “bom negócio” se torna cada vez mais estreita.

22 de jul. de 2008

O Cavaleiro das Trevas (II)

Coringa - Ele não quer dinheiro, ou mesmo notoriedade. Não é explicável através de uma psicologia barata e reducionista, em que traumas infantis poderiam solucionar tamanha brutalidade. Como Anton Chigurh, o matador interpretado por Javier Bardem em Onde os fracos não tem vez, o Coringa de O Cavaleiro das Trevas não possui origem ou motivações fáceis.

Ele é o agente do caos. Cuja razão de existência é desmascarar a fragilidade da “ordem”. Apontar as feridas abertas como sociedade. Esfregar em nossas faces a linha tênue que separa a normalidade da vilania, o politicamente correto das áreas mais soturnas de nós mesmos. A cena dos barcos, que ele chama de “experimento social”, é o emblema daquilo que também quis fazer Lars Von Trier em seu Dogville: Queimar as cortinas da amabilidade. Desnudar o egoísmo que tem consumido o planeta em tempos globalizados.

Coringa é o lado B do próprio Batman. A face queimada da moeda de Harvey Dent/Duas Caras. Tememos o novo Coringa porque sua retórica é precisa e assustadoramente lógica. Não quero ser mal interpretado, mas acredito que Coringa está longe da “insanidade”. Às vezes ele é são até demais, e é isso que nos amedronta ao ver o filme.

Não há um vilão convencional em O Cavaleiro das Trevas. O filme (o mundo) é bem mais complicado que isso. Coringa é um catalisador, a vanguarda que questiona os valores estabelecidos. No embate final com Batman a câmera vira de ponta cabeça, enquanto Coringa faz seu último discurso a favor da anarquia. Utilizando-se de um recurso de linguagem tão “primário”, Nolan exemplifica com perfeição quem é este homem fantasiado. Aquele que quer virar o mundo de cabeça para baixo. Virá-lo às avessas. Há algo de Antônio das Mortes, o matador de Deus e o Diabo na Terra do Sol em Coringa. Um personagem à frente (fora?) de seu tempo.
Nolan não dá respostas em seu filme, e nem precisa. Batman-O Cavaleiro das Trevas é uma grande provocação pós-moderna para aqueles que vendem a Democracia como o último estágio e possibilidade única de organização política. Disse em post anterior, quando escrevia sobre O Escafandro e a Borboleta, que o Cinema ainda engatinha, com míseros 113 anos. Pois este filme veio à tona para lembrar-nos que a Civilização também dá os seus primeiros passos, e que a Democracia é cheia de fraturas de uma estrutura óssea que pode vir abaixo com um simples “empurrãozinho” deste palhaço macabro.

21 de jul. de 2008

O Cavaleiro das Trevas (I)

A seqüência de Batman Begins é um filme que muito me angustia. Um amigo até pensou que meus suspiros no meio da sessão eram de insatisfação diante do filme. Era justamente o inverso. Batman-O Cavaleiro das Trevas é de uma complexidade e crueza que inquieta todos aqueles que refletem sobre dias tão sombrios, incertos e ambíguos como os nossos.

O brilhante filme de Christopher Nolan é uma aguda reflexão sobre o mundo pós-11 de setembro. Regido pelo medo, intolerância, pela desconfiança perante as instituições, por inimigos invisíveis e incompreensíveis. Um mundo em trevas. Nolan não fez um filme sobre um super-herói, mas sobre qual herói necessitamos, ou devemos (não) ter. É um filme para gente grande, para se ver sem pipoca.

Considerando a complexidade do filme, tentarei fazer um texto um pouco diverso dos que tenho escrito. Ao invés de uma resenha com início, meio e fim, dividirei algumas idéias primeiramente sobre os personagens do filme e depois sobre o que acredito ser seus principais temas.

Batman – No novo filme, ele não pode ser mais o herói forjado no primeiro. Ele deve se reinventar. Sua existência alterou a ordem e dimensão dos problemas de Gotham. O que era originalmente para ser uma “inspiração” de luta do bem e pela justiça foi transfigurado pelos cidadãos em um símbolo quase de revanchismo, de luta com as próprias mãos contra o crime. E, o mais importante, uma luta acima das leis do estado democrático. Batman deve agora lutar contra um estado de coisas do qual ele mesmo é responsável por sua gênese. E a figura e o resultado mais assustador dessa alteração criada pelo próprio herói é o surgimento de um criminoso sem motivações óbvias, um anarquista agente do caos chamado Coringa.

A situação de Batman, portanto, é insustentável. Ele nem inspira, muito menos representa essa sociedade em transformação. Ele é um fora-da-lei. Um milionário excêntrico debaixo de uma fantasia sofisticada. Se o primeiro filme foi sobre a gênese do herói, O Cavaleiro das Trevas é a revisão crítica de sua figura. Como seres pensantes, não podemos aceitar as condutas de Batman como se fosse ele um herói convencional e incorruptível. Em certos momentos suas atitudes podem ser tão questionáveis quanto as do Capitão Nascimento de Tropa de Elite. Os fins justificam os meios? Pergunta Christopher Nolan para nós, espectadores.

Em uma sessão de interrogatório, nosso “herói” esmurra seu depoente em busca de informações. Em outro momento, quebra as pernas do líder da máfia. No clímax do filme, utilizando um recurso tecnológico que nos remete às profecias de Orwel em 1984, Batman abusa de seus poderes subvertendo as liberdades individuais e democráticas. Ele passa a ouvir e vigiar todos os habitantes. Queremos realmente um justiceiro dessa natureza? Ainda resta alguma outra possibilidade para a justiça dentro da lei? O próprio homem-morcego possui distanciamento para enxergar sua postura como duvidosa.

Diante dessa necessidade de repensar seu papel como símbolo, Batman vai a busca de um outro herói possível, mais compatível e competente com a realidade que o cerca. Ele o encontra em Harvey Dent, paladino irrepreensível em busca da justiça.

Como muito bem disse um outro amigo meu, Batman/Bruce talvez nem seja o convencional protagonista do filme. Seu tempo em cena é quase equivalente às demais peças do tabuleiro de Cavaleiro das Trevas como Harvey Dent (a “chave” do filme, como veremos), Coringa e o comissário Gordon. Quatro personagens do filme que tentarei esmiuçar ao longo da semana. Para logo em seguida tentar expor sobre o que acho que são os temas e objetivos deste grande e provocativo filme.

Caro leitor. A ida ao cinema para conferir Cavaleiro das Trevas é quase imperativa. Para mim, a melhor adaptação (subversão?) de um HQ da história do Cinema! Vá ver. E até o próximo post.

20 de jul. de 2008

O Escafandro e a Borboleta

Toda a regra deve ter sua exceção. Pensava realmente em não escrever em julho, numa tentativa de “desburocratizar” a própria vida. Não ser “síndico de mim mesmo” como dizia Tom Jobim. Mas... nesse meio tempo vi alguns filmes que muito me emocionaram e despertaram o desejo de voltar a este espaço. O anseio por comunicação falou mais alto. Então, estamos de volta! E, por enquanto, sem novos recessos à vista...

O Cinema constantemente é lembrado como uma arte que dá vida aos sonhos, asas à imaginação, etc. Nem sempre essas denominações conferem com os filmes que vemos, principalmente no que se refere ao mundo dos sonhos, ainda tão pouco explorado no Cinema e que parece distante dos planos dos cineastas e do público. Com exceção talvez de David Lynch e seus devotos. Porém filmes como O Escafandro e a Borboleta faz-nos lembrar do grande potencial para representação de nossas fantasias que possui essa arte que ainda engatinha, com míseros 113 anos.

O filme do cineasta, e também pintor, Julian Schnabel conta a fascinante história de Jean-Dominique Bauby. Editor da revista "Elle" francesa que sofreu um derrame deixando todo o seu corpo paralisado. Exceto seu olho esquerdo. Em existência tão enclausurada, que sentido de vida pode alentar tamanha angústia? Jean-Do, como é chamado, se refugiará fundamentalmente em duas ferramentas: A memória e a imaginação. Além disso, se predispõe a escrever um livro sobre sua nova experiência de trancafiado em si mesmo, somente com o piscar de seu olho remanescente.

Os momentos em que embarcamos na imaginação e memória do protagonista são os melhores do filme. São nessas cenas, que nos fazem literalmente “entrar” em Jean-Do, que Schnabel explora com maestria essa certa vocação do Cinema para adentrar na subjetividade e fantasias de seus personagens. Como disse o crítico Daniel Piza, e eu concordo, o filme vai além e é melhor que o próprio livro que deu base ao filme.

A criatividade, a plasticidade das imagens. Tudo coopera para uma experiência de Cinema e de vida de grande intensidade. O Escafandro e a Borboleta nos reconcilia com a grande arte, lembrando a cada plano as imensas possibilidades da linguagem cinematográfica. Tema e forma numa relação simbiôntica e sofisticada, mas nem por isso distante do espectador, pelo contrário.

Lendo a resenha do filme, simplesmente, pode-se ter a errônea impressão de uma obra, digamos, “depressiva”. Um novo Menina de Ouro, por assim dizer. Mas não se engane. O Escafandro e a Borboleta é um recado para a reconstrução e celebração da família, dos amigos, do amor. Das borboletas da vida. Um filmaço. Junto com I´m not there, um dos melhores do ano.

11 de jul. de 2008

Recesso


Meus caros amigos,

Julho será um mês de sol, praia e ócio produtivo.

Voltamos em Agosto.

grande abraço.

Josafá

Ps: Só não deixem de ver "O Escafandro e a Borboleta". É maravilhoso!

30 de jun. de 2008

Cinturão Vermelho

Até parece que estou de mau humor. Há tempos que não escrevo uma crítica positiva. Mas a culpa é das estréias e não do meu temperamento, garanto.

David Mamet é um relevante dramaturgo norte-americano que às vezes se aventura na direção cinematográfica. E traz em seu novo filme a história de um herói contemporâneo. Um professor de Jiu-Jitsu que deve manter seus princípios num mundo corrupto e corruptor.

Ética é mesmo um valor em baixa nos costumes, por isso é até saudável ver um artista preocupado em pensar sobre o assunto. Mamet é um praticante da luta marcial que dá pano de fundo ao filme. Ou seja, fala do assunto com conhecimento de causa. Mas o problema do cineasta, e de seu Cinturão Vermelho, é que ele leva muito a sério o que aprendeu na academia. A, digamos, “filosofia” do Jiu-Jitsu que rege o comportamento do protagonista é tão rasa quanto a presente naquela outra série sobre artes marciais, Karate Kid.

E, como se não bastasse essa tábula rasa ideológica, Cinturão Vermelho possui o mesmo paradoxo que havia nos filmes do Daniel San, Sr. Miyagi e companhia: Durante todo o filme o herói diz veementemente “não” à violência, só que no final da trama não resta outra alternativa ao indivíduo senão entrar na pancadaria. Satisfazendo assim o clímax do filme e a catarse da platéia. Meu caro Mamet, me engana que eu gosto...

Ah, quanto ao desempenho dos brasileiros Alice Braga e Rodrigo Santoro. A sobrinha da Sônia continua uma graça e muito talentosa. O galã melhorou seu inglês e convence bem como um dos vilões. Em breve os dois devem aparecer em outras produções gringas. Pois é, meus amigos. Globalização.

17 de jun. de 2008

Fim dos Tempos

M. Night Shyamalan, uma das mentes mais originais do cinema norte-americano, pode ter afundado para sempre sua carreira. O dano pode ser irreparável. Fim dos Tempos é um grande equívoco dentro de uma filmografia mais que respeitável. A pior obra do diretor.

Desde o fracasso de seu último filme, A Dama da Água, a expectativa e a necessidade de um outro sucesso nas bilheterias se fazia imperativo para Shyamalan. Mas duvido que seu filme faça boa carreira nos cinemas. A idéia de Fim dos Tempos é até engenhosa: Uma substância tóxica surge não se sabe de onde, e impede que as defesas naturais do ser humano atuem. As pessoas começam então a cometer suicídios em massa.

Os primeiros cinco minutos são eletrizantes. O diretor de origem indiana é um discípulo de Hitchcock e filma muito bem, sabe criar tensão com sua câmera. O que atrapalha o restante dos noventa minutos de filme é que Shyamalan, além de ser influenciado pelo mestre do suspense, também é um grande tiete do cinema de Steven Spielberg e acaba adotando para si as mais duvidosas qualidades dos filmes do diretor de ET: Sentimentalismo barato, excesso de simplificações e o anseio em colocar no altar os valores da família.


Desde meados dos anos setenta, o cinema catástrofe tornou-se um gênero constante em Hollywood. Após o 11 de setembro, junto com os alertas quanto ao aquecimento do planeta, filmes do gênero voltaram a pipocar aos montes. Shyamalan com este filme se junta a essa trupe do ecologicamente correto e de crítica à paranóia americana, mas sem eficácia alguma.

O diretor costuma utilizar metáforas em suas obras para expor sua autoralidade, seu ponto de vista. Mas em Fim dos Tempos tudo é muito óbvio, raso demais. O que falta de complexidade sobra em concessões para o grande público que busca ir ao cinema para alienar seus neurônios. Algumas cenas lembram o pior do filme B e de horror. Não dá para levar a sério. Parece que o homem desistiu de ser o cineasta instigante que era.

Um filme pretensioso (no mal sentido de termo), terrivelmente interpretado (Nem Mark Wahlberg se salva) e quase grotesco em algumas cenas de suicídio. Incerto é o destino de M. Night Shyamalan na cova dos leões da indústria de Hollywood. Espero que não, mas talvez esteja próximo o fim de seu tempo...